ano 2011, Parte VII

Int. Cama. Pode ser madrugada.
Escuro, uma sombra olha os pulsos.


_ [sussurrando] Você é minha poeirinha estelar.
(silêncio)


Está muito escuro, só ouvimos uns sussurros, às vezes não conseguimos distinguir de quem é.

_ Eu ainda tenho a marca dos seus dentes nos meus pulsos.
_ Que romântico... Se não fosse somente um sonho.
_ Agora é somente uma meia lua, muito pequenininha, porque já se passaram 26 anos. Mas ainda dá pra ver.
_ É igual a lua negra? Bem fininha.
_ É, é igual a lua árabe, é a minha cicatriz mais antiga.
_ Adoro a lua negra, é a lua mais linda.

Ele começa a se levantar. Senta-se na beirada da cama, fica parado lá por uns minutos.

_ O que foi?
_ Nada. Só estou reunindo forças para sair.
_ Você realmente precisa ir? Fica mais um pouco.
_ Mais um pouco?
_ Mais uns dias, talvez.
_ Adoraria ficar mais... Mas realmente preciso ir.
_ Mas amanhã de manhã ainda é domingo de manhã.
_ Eu sei... Mas eu preciso ficar um pouco com minha família, mesmo que seja somente mais uma manhã, minha mãe e meus irmãos vivem longe, cada um mora numa cidade diferente. Viemos passar o dia de ano juntos, e eu já sumi por um dia. Domingo a tarde vamos todos embora, preciso aparecer, dar atenção a eles e me preparar para viajar.
_ Você já vai embora amanhã? Já se deu conta de que estamos mais de 24 horas juntos?
_ É, já vou embora... Pouco tempo para dizer que a gente se conhece e muito tempo para dois desconhecidos passarem juntos.
_ Pouco tempo... Tem um personagem de Camus que disse que as lembranças de um dia são o suficiente para passar cem anos na prisão.
_ É o protagonista de O Estrangeiro que diz isso?
_ Sei lá, não me lembro. Na verdade, também não me lembro se é o personagem de um outro escritor ou se realmente tem algum personagem que disse algo assim...
_ É uma citação um pouco vaga, não acha? Mas acho que já li algo semelhante n'O Estrangeiro.
_ Meio vaga é melhor do que totalmente vaga. Vou na sala botar um CD para tocar. Você gostaria de ouvir alguma coisa para nossa despedida?
_ Gostaria que você escolhesse.

Ela se levanta, veste um shortinho, sai do quarto, dá para ver quando acende a luz do corredor, que invade suavemente o quarto. Ele se levanta começa a se vestir, muito lentamente, o som da introdução começa a entrar pelo quarto, ela volta correndo, arranca as calças da mão dele, pula na cama e começa a dançar e canta uma estrofe junto com a música:

The bluest eyes in Texas..”

_ O que é isso que está tocando?
_ Nina Persson e Nathan Larson.
_ Nunca ouvi falar.
_ Eu também não...
_ Você inventou esses nomes?
_ Não, acabei de ler na caixa do CD.
_ Mas você também cantou o refrão.
_ Eu sempre ouço esse CD. The bluest eyes in Texas é o nome da música.
_ Como sempre ouve um CD e não conhece?
_ Eu compro CDs de músicos que não conheço, normal. Mas nesse caso é a trilha sonora de Boys Don't Cry. Conhece? Não é uma banda.
_ Eu vi o filme, mas não me lembro bem, acho que é com Hilary Swank, ela se veste de menino e não lembro mais nada.
_ É esse filme mesmo. Lembra pelo menos se gostou?
_ Difícil dizer. Só lembro que me senti mal com o filme, agora não sei se foi porque o filme era ruim ou se era triste.
_ O filme é bom, que memoriazinha imprestável, Jesus!
_ Eu sou o contrário d'O Estrangeiro, de Camus, preciso de cem anos de vida para passar um dia relembrando.
_ É melhor não ir embora então, não se esqueça de mim.
_ Eu preciso.
_ Precisa nada. Vamos remarcar seu voo, você fica mais essa noite, vai de manhã ver sua família, almoça com eles, quando eles saírem para o aeroporto, você volta para mim.
_ Não estava falando que preciso ir embora, embora precise também.
_ Ahn?
_ Preciso esquecer você.
_ Já? Seu bocó!

Ela se deita. Ele volta para cama. Ficam em silêncio por um tempo, só ouvindo as músicas.

Ela começa a cantar junto com a música.
Why can't we live together? Everybody wants to live together...”

_ De quem é essa música?

Ela continua cantando. Fica em pé na cama de novo, ele está deitado olhando para ela. Está aborrecida com a ideia de que ele a quer esquecer. Mas não demonstra, parece feliz cantando.

Tell me why, tell me why, tell me why...”

_ Olha, não quis dizer que quero lhe esquecer, mas você...

Interrompendo, ela canta mais forte. Mais aborrecida ainda por não conseguir esconder dele.
Why can't we live together?”

_ Só quis dizer que vai ser difícil ficar sem você, agora que te conheci.

Tell me why, tell me why, tell why...”

_ De quem é essa música?
_ [no rítmo da música] Timmy Thomas.

Acaba o CD. Sem dizer nada ele se levanta, se veste e sai do quarto. Ela não acredita que ele vá embora assim. Fica quietinha pensando, “não acredito que ele vá fazer isso, também não sei porque a ideia dele me esquecer aborrece-me tanto, também terei de esquecê-lo, isso não é uma ofensa. Ele só está sendo realista. Eu também sou assim, realista. Acabamos de nos conhecer, qualquer um pode ser perfeito em 24 horas. Eu sei, mas... Sei lá. E se eu não quiser esquecer...”
Começa a tocar uma música, ele trocou o CD. Depois de um tempinho ele entra no quarto dançando e cantando.

Palhaços, marcianos, canibais e os pirados dançando, dormindo de olhos abertos, a sombra da alegoria dos faraós embalsamados.”

_ Eu sei que o CD é meu, mas não conheço essa música.
_ Eu também não sei de quem é, talvez seja de João Bosco, só conheço a música porque é Elis Regina que está cantando.

Ele continua dançando e oferece sua mão em convite a dançar. Ela não aceita, reluta como quem diz eu quero, ele sorri tão abertamente que ela é sugada para perto do seu rosto e dança com ele.

_ Não quero precisar te esquecer. Pronto falei.

Ele para de cantar e se senta na cama, mas não olha para ela.
_ Olha, não vamos nos preocupar com isso agora.
_ Agora? Já estou preocupada com isso desde que você disse que não me conhecer era alguma coisa errada..
_ Eu disse isso?
_ Disse, foi logo no início.
_ Eu achava que o vinho não tinha feito efeito.
_ Feito efeito, feito efeito, [musicando] feito efeito, feito efeito.
_ Você sempre acha palavrinhas para brincar.
_ Deus tem me ensinado transformar tudo em brincadeira.
_ Você realmente acha que é amiguinha de Deus?
_ Eu sou a amiguinha imaginária de Deus, sempre pergunto se ele está bem, se quer contar alguma coisa... Vou aproveitar essa amizade para voltar o tempo, para a gente ficar mais tempo junto.
_ E eu ficar todo nervoso de novo para falar com você? Deve ter um jeito melhor.
_ Um jeito possível já basta, não precisa sequer ser melhor.
_ Nesse caso viaja comigo amanhã! Passa um tempo comigo lá na minha casa...
_ Adoraria, no entanto eu não posso.
_ Claro que pode, bobinha.
_ Tenho a pousada para administrar. É alta temporada.
_ Mas você é a dona, qual a vantagem de ser dona, se não pode se dar uma folguinha?
_ É verdade, posso conversar com meu irmão amanhã, talvez ele não se importe de ficar aqui até sexta.
_ Ele vai adorar te fazer o favor de ficar mais uns dias nesse paraíso.
_ Tomara.

A voz de Elis toma conta do quarto, soberana.

_ A lucidez me incomoda.

Int. Cama. Crepúsculo matinal
Ela está se arrumando para trabalhar na pousada, em poucas horas vai começar a servir o café da manhã. Ele abre os olhos, ela se aproxima, ele faz gesto de quem vai se levantar. Ela o impede.

_ Não, não se levante ainda.
_ Humm.
_ Volte a dormir, só vou ver se está tudo certo na cozinha
_ Hum?
_ Para o café da manhã, vou ver se está tudo certo na cozinha.
_ E eu?
_ Quando estiver tudo pronto, venho aqui para te chamar para tomarmos café da manhã juntos.

Ela sai.
Ele se levanta, recolhe suas coisas e sai do quarto. Mas logo depois volta. Mexe na mesinha de cabeceira dela, acha uma caneta, abre a gaveta, pega um caderninho de notas dela, abre, escreve rapidamente e guarda o caderninho no mesmo lugar.
Sai.

O quarto vazio vai ficando cada vez mais claro, até entrar o primeiro raio de sol.
Quando ela volta, vê o quarto vazio feito luz,
que triste, “é... ele fez isso...”
Se senta na cama meio vazia, como se não houvesse mais nada no mundo que pudesse fazer: resolve escrever.
Pega o caderninho na gaveta abre na página do último texto que escreveu, relê, rabisca essa última frase. “Eu não existo, lembra? Se esqueça de mim”.
Vira a página e descobre o bilhete minúsculo:

Bom dia, amiguinha, bocó, linda...
também não quero precisar te esquecer.

2 comentários:

Lu Morena disse...

Owwwwnnnnnnnnnn
mas eu fiquei triste.

Lu Morena disse...

Ah, as ideias!!!!! Ela era pequena. Faz todo sentido!