ano 2011, Parte VIII

Ext. Aeroporto. Tardinha.
Ele olha o relógio do celular, olha em volta, se senta, olha o relógio de novo, se levanta, encara o corredor. “Será que ela não vem? Pode ter mudado de ideia, pode ter caído na real... ou, melhor, ter caído um raio fulminante...”
Há um voo sendo chamado, "será esse?", começa a procurar seu bilhete, ele apalpa os bolsos, abre a mochila, apalpa os bolsos de novo, olha para dentro da mochila de novo... “Onde será que está o bilhete do embarque? Eu deveria ter colocado bem a mão”. Claro! Abre o livro que estava na sua mão e bingo! Mas é tarde demais, já se esqueceu do número do voo que estava sendo chamado.
Outra chamada, bilingue. Dessa vez está com o bilhete na mão, pela maneira como olha o bilhete de embarque, só pode ser o voo dele. Ele se levanta, começa a caminhar em direção ao portão de embarque, olha pela última vez para o corredor de acesso.
Lá está ela, olhando para ele. Pelo jeito que sorri deve ter assistido a pequena saga à procura do bilhete.

_ Não fique aí parada, pateta. Vem, já estão chamando o nosso voo.

Ela se aproxima, parece um pouco estranha, mas ele abre um sorriso que desarma seja lá o que houver. Ela sorri desprevenida. E corre para abraçá-lo, lança seus braços em volta do pescoço dele como se fossem cachecóis, que saudade, parece que esperou a vida inteira para isso. Ele mal pode suportar tamanho desejo, essa a tempestade de raios e trovões, seu corpo se desfaz no beijo.

_ Estou um pouco nervosa com essa situação.
_ Está com medo de voar?
_ Não, claro que não.
_ Medo de mim?
_ Às vezes.
_ Boba, pode falar, é medo de voar.
_ Não, adoro voar...
_ E?
_ Morro de medo de avião.
_ Essa é boa. Como voar, então?
_ Você já esqueceu? Um dia te ensino.
_ Não esqueci, acabou o pirlipimpim.
_ Um homem velho desse falando de Peter Pan.
_ Vale tudo pela minha Wendy.
_ Para com essas gracinhas bonitinhas.
_ O que foi? Parece que realmente está falando sério agora...
_ Eu realmente estou.
_ Sério? O que foi?
_ Eu não posso ir com você.

Ele olha para ela, mas ela está de olhos baixos. Ele busca seus olhos vãos, não acha, então aguarda... Ela estranha esse silêncio, tão diferente dos outros silêncios, pensa que talvez ele esteja chocado, aborrecido, com raiva! "Ai, ele tá com raiva de mim"... Não pode mais adiar um segundo sequer para descobrir e olha para ele. Mas ele está sorrindo... Sorrindo?!

_ O senhor não vai falar nada?
_ Vou, claro, não estamos de mal. Só estava esperando você se recompor da notícia.
_ Eu me recompor? Fui eu quem lhe deu a notícia, doido.
_ Eu sei, mas logo depois baixou tanto seus olhos que achei que fosse enterrar a cara no chão ou desmaiar com o choque.
_ Como posso estar chocada com uma notícia que eu mesma anunciei?
_ Era nisso que eu estava pensando, por que ficou tão chocada.
_ Era? Chegou a algum lugar?
_ Não. Não passei de fase dessa vez.
_ Vou lhe ajudar. Eu fiquei com medo da sua reação.
_ Está mais perdida do que eu. Claro que não foi isso.
_ Fiquei sim, fiquei pensando: por que ele não diz nada?
_ Mas isso foi depois de ficar de cabeça baixa, quando já tinha se chocado com sua despedida de mim.
_ Chocado é uma palavra feia, e não foi nada disso.
_ Feia igual a essa situação. Olha, se você achasse que minha reação seria ruim, teria dado explicações ou me elogiado para amenizar.
_ Então, lindo, eu não posso ir, lindo, porque vai ser ainda mais difícil, lindo, esquecer depois, bocó.
_ Não precisa me dar explicações, feiosa, elas não valem nada, feiosa, se a conclusão é idiota, feiosa. Preciso pegar o meu voo. Foi bom lhe conhecer.
_ Espere. Não quero que fique com raiva de mim.
_ Pareço estar com raiva, bocó?
_ [cabisbaixa] Não.
_ [sorri] Olha para mim... Não se preocupe,
_ Não?
_ [ainda sorrindo] Não se preocupe, vai me esquecer.
_ Por que você está querendo tornar isso mais fácil para mim?
_ É só a verdade, não terá problemas em me esquecer.
_ Não mesmo? Vai ser rápido assim?
_ Vai, cem anos passam rapidinho.
_ [Sorrindo] Você é ótimo. Se fosse o contrário, eu já estaria enchendo a sua cabeça, dizendo que é errado, que vale a pena viajar, que é para aproveitar...
_ Não preciso encher sua cabeça com isso, você já sabe.
_ Pior que sei mesmo. Só não sei o porquê da minha reação quando falei que não vou com você.
_ Poderia lhe contar, mas você não vai gostar de saber.
_ Sempre gosto de saber.
_ Também gosto de saber. Gosto do sabor. Hum, saber e sabor têm a mesma raiz, já foram a mesma palavra, igual ao homem e o macaco com o tal ancestral comum.
_ É mesmo?
_ Sei lá, deve ter. Devo ter visto isso em um filme.
_ Você já disse isso ontem, duas vezes!
_ Então foi de mim mesmo que eu ouvi isso? Fonte confiável.
_ Um cérebro que não sabe o que é o erro.
_ Meu cérebro não sabe o que é o erro, dentre todas as demais coisas que não sabe.
_ Você ou não sabe, ou se esquece, é um milagre que esteja vivo.
_ Sempre digo isso, é um milagre que eu esteja vivo. Quando era criança sempre ouvia aquela máxima “só não perde a cabeça, porque tá grudada no corpo”. Eu morria de medo: e se eu perder o corpo? Ferrou tudo.
_ Criança acredita em qualquer coisa.
_ Adultos também. Quando era criança me diziam que quando a gente dormia nosso espírito saía do corpo e ia passear, por isso sonhávamos... Nossa, eu tinha muito medo de sonhar e me perder, ou esquecer de voltar, ou de acordar sem o espírito e morrer... Com isso, acreditava que as pessoas rezavam antes do dormir por essa causa, como se a oração fosse as migalhas de pão de João e Maria. Eu ajoelhava na cama, sempre falava com Deus:
Deus, se eu me esquecer do meu corpo no sonho, por favor, me lembre.
Eu não me esqueço das coisas por mal, é por memória ruim mesmo.
E quando me esquecer de orar antes de dormir, me lembre também.
MAS se eu já estiver dormindo, não me acorde!,
simplesmente lembre-se dessa oração que é mais seguro.
Amém.”

Última chamada do voo.

_ Ih, última chamada de novo.
_ Então, conta logo sua teoria. Por que fiquei chué assim?
_ Tem certeza de que quer perder os últimos minutos com isso?
_ Claro!
_ [Cantando] Every time we say goodbye, I die a little, [começa a dançar com ela] every time we say goodbye, I wonder why a little, why the Gods above me, who must be in the know, think so little of me, they allow you to go.
_ Linda, linda música acho que já ouvi.
_ É de Cole Porter. Muita gente já gravou, inclusive a Nina Simone de que você tanto gosta.
_ Eu amo Nina Simone. Mas confesso que não a conhecia antes de ver Julie Delpy imitando ela em Antes do Pôr do Sol. Meu segundo filme predileto.
_ [imitando Julie Delpy imitando Nina Simone] U hum, you, hum you're cute!
_ Ah, você conhece o filme.
_ Também é meu segundo filme predileto.
_ E qual é o primeiro?
_ Antes do Amanhecer, claro.
_ Será que eu também vou fazer você perder o seu voo?
_ Não, ainda somos jovens e tolos.
_ Eu ainda sou jovem, você não.
_ Não, baby, você ainda é tola. Agora tenho que ir.
_ Mas...
_ Mas o que?
_ Mas ainda há tantos assuntos pelo caminho.
_ Assuntos? Assuntos não, por favor.
_ É verdade, deixamos muitas conversas pelo caminho.
_ Feito migalhas, de João e Maria, assim sempre saberemos o caminho de volta pra casa.
_ Mas os bem-te-vis vão comer as migalhas.
_ Eu disse sempre? Quis dizer nunca. Nunca saberemos o caminho de volta.
_ Pelo menos alimentamos os passarinhos...
_ Então, se mudar de ideia e quiser me achar, siga os bem-te-vis e pergunte por mim.
_ Mas como perguntar se ainda não dissemos nossos nomes? Ainda não lhe contei as duas ideias mais românticas do mundo.
_ Nunca saberei. E eu tenho que ir.
_ Já? O meu nome é...
_ [interrompendo] Eu não quero saber o seu nome agora que vou ter que lhe esquecer. Você mesma disse, quando não quis me dizer seu nome ontem, que é mais fácil esquecer um rosto sem nome.
_ É, com o tempo sem ver alguém, até o rosto vai ficando menos claro, mas o nome nos lembramos com perfeição.
_ Por isso também não me deixou falar o meu, agora vejo que você estava com razão. Já que não vem comigo, só me restou esquecer.
_ Mas eu não quero lhe esquecer.
_ Fácil, não me esqueça.
_ Vou tirar uma foto sua agora.
_ Não gosto de tirar foto.

Ela pega o celular. Já tinha tentado várias vezes tirar foto com ele, mas ele não deixava. Agora parece que ele vai deixar.

_ Vai deixar?
_ Vou, sou bonzinho.

Ela se prepara e
click!
Na hora ele faz uma careta contraindo todos os músculos da cara, tão feio, monstruoso mesmo. Até uma menininha de três anos que estava por perto foi se esconder na barra da saia da mãe.

_ [rindo] Seu monstro! Olha o que você fez.
_ É involuntário. Sempre acontece quando tentam tirar fotos minhas, acho que é um tipo raro de alergia.
_ Ah, já sei o seu nome!
_ Duvido!
_ Sulley, Monstros SA, peludo, bonzinho e cheio de caretas. [rindo muito]
_ Idiota, isso faz de você o Mike Wazowski, verde, redonda e com um olhinho só pra me ver.
_ Redonda?! Seu-desgramado-fio-de-uma-geni-parideira-dos-diacho-a-quatro-e-mau e...

Última chamada para o voo tal, com destino tal, embarque pelo portão tal, em frente ao fulano e sicrana. É assim que funcionam aeroportos?

_ Realmente preciso ir.
_ Salvo pelo gongo.
_ Foi bom lhe conhecer e imaginar todos aqueles mundos fantásticos com você na minha vida.
_ Espera.
_ E no fim das contas vamos precisar esquecer.
_ Espera.
_ Au revoir!
_ E se eu não quiser esquecer?
_ Ciao!
_ Espera, pelo menos me diga o seu nome.
_ Bye-bye!
_ Que que custa?!
_ Tem certeza?
_ Tenho.
_ Você se lembra que é mais fácil esquecer um rosto do que esquecer um nome?
_ Eu sei. Nunca esqueci o nome daquele menininho por quem me apaixonei quando criança, mas não me lembro mais do rosto. E eu estou aqui envelhecendo e ele continua um menino.
_ Azar o seu. [enquanto pensava, ah, que lindo isso e que sortudo esse Peter Pan]
_ Por que você não está insistindo para eu ir com você?!!! Seu pastel!
_ Até agora tivemos nossa noite perfeita. Se acabou para você, acabou para mim também. Sua caldo-de-cana!
_ Combinamos mesmo, me deu uma vontade agora de comer pastel de queijo com caldo de cana.
_ Adorava isso quando era criança, sempre comia na saída do colégio.
_ Lembra que o copo era uma cone de papel? Ficava sustentado por um funil de alumínio... Que memória antiga.
_ É velha mesmo! A gente tinha que tomar e girar o copo um pouquinho porque o papel ficava mole e rasgava.
_ Velha é a sua avó!
_ Por que a sua avó é jovem?
_ Grrrr, irritante, parece criança!
_ É, pareço. Todo mundo diz que eu pareço mais jovem.
_ Menininho, você acha que somos apenas uma noite perfeita?
_ Qual o mal em sermos uma noite perfeita?
_ Poderíamos ser mais... Sinto que é mais, mas só o tempo juntos que poderia confirmar. Antes de começar um relacionamento, sempre lembro da música “quem sabe o príncipe virou um sapo”, como um alerta de cautela. Não temos como ficar juntos, há muita distância entre nós.
_ Não sinto nenhuma distância entre nós.
_ Eu também não. Nunca foi tão fácil estar com alguém.
_ Acho que a gente não está conseguindo se despedir. Mas eu realmente tenho que entrar naquele avião. Vem comigo!
_ Não posso. Você não entende.
_ Entendo a sua dificuldade em aceitar que somos muito mais do que bons momentos.
_ Como pode entender?
_ Somos adultos, não nos entregamos a coisas de uma noite, porque já tivemos algumas assim e a realidade do dia seguinte é decepcionante.
_ Mas não foi decepcionante.
_ Foi ainda melhor.
_ Mesmo agora, nessa conversa difícil, é mais fácil com você.
_ E ser mais fácil torna tudo pior.
_ O que eu devo fazer?
_ Deve tomar sua decisão sem minha ajuda.
_ Seu chato!
_ Sua pulga!
_ Seu... ahn?! Pulga?
_ É, chato, pulga, carrapato... Sacou?
_ Quer parar de facilitar?!
_ Claro, sou eu que estou dificultando...
_ Você acha que estou dificultando?
_ Claro.
_ Está com raiva?
_ Claro, estou quase mordendo.
_ Por quê?
_ Porque não gosto de infelicidade desnecessária.
_ Mas moramos tão longe, é tudo tão incerto...
_ É, você já é “adulta para aventuras”. “Não se pode investir em relacionamentos sem futuro”. “Mal nos conhecemos”... Coisas assim que você está pensando, né. Essas sabedorias que acumulamos durante a vida e que, às vezes, só servem para alimentar um monte de medo besta à beça.
_ Medo da eternidade dessa noite de verão. A gente aprende essas coisas com a nossa experiência. Depois desacredita em romances, eles são mágicos apenas em livros e filmes. Vamos deixar o tempo dizer.
_ O tempo só passa, afasta e apaga. Segunda chance não dá em árvore. E se você se arrepender? E se for tarde demais? E se você não conseguir esquecer? Eu vou virar um fantasma, um tarado, um leão rondando seu sono. Não se pode voltar atrás, desfazer e refazer as coisas.
_ Gostaria muito que existisse isso, alguém me amasse tipo destino. É uma ideia tão bonita. Mas como diria Léo Jaime...
_ [interrompendo] Eu sei, a vida não presta. Mas a verdade é que a gente quer tanto que aconteçam coisas boas, mas quando acontece, a gente duvida tanto, tanto que perde, por preguiça ou por medo.
_ É porque a gente já se convence de que não existe, acaba não acontecendo.
_ Fica dizendo que não existe para não se frustrar se não acontecer.
_ Ou então não reconhece.
_ Esse é o pior, gente que não sabe a diferença.
_ Não, não é pior. Dizer que não existe pra não se frustrar é pior, porque aí se frustra de qualquer jeito.  Perde só a chance de não se frustrar, porque a frustração já tá garantida.
_ Boa parte da nossa infelicidade vem da nossa própria burrice. Enfim, nada mais deprimente.
_ Deprimente, de fato. Agora você não está facilitando.
_ Eu avisei que você não ia gostar de saber e que você já sabia de tudo. Por que mesmo assim não vem comigo? Eu não entendo.
_ Você não pode entender.
_ Só tem um motivo para eu não entender: você não está me contando tudo. Tem algo a mais, não sei o que é, e não tenho mais tempo para descobrir.
_ Você sabe que é difícil. Por que você não apareceu antes?
_ Antes do quê?
_ Antes da minha vida estar assim.
_ Assim como?
_ Assim, em perigo de cometer um grande erro.
_ Que erro?
_ Ah... O problema é justamente saber qual é o erro...
_ Eu estava ocupado.
_ Quando?
_ Antes, antes eu estava ocupado cometendo meus próprios erros, por isso não cheguei antes.
_ Como você pode ter tanta certeza de que devemos ficar juntos?
_ Não tenho tanta certeza, sequer certeza eu tenho. Só gostaria de passar mais tempo com você, porque até agora eu estava gostando muito, e gosto de você, parece simplesmente natural que a gente fique mais tempo junto.
_ Eu sinto isso, mas não é só isso.
_ Desembucha, menina, não somos mais crianças, podemos resolver nossos problemas...
_ Tá bom, então eu falo.
_ Fala logo, só tenho mais um minuto.
_ É difícil trocar o real por uma fantasia, por mais perfeita, estrelas e brilhantes que você seja. Às vezes, ser adulta dói.
_ Nunca saberei a dor de ser adulto.
_ Tenho dúvidas se erro ao me casar ou se erro ao jogar tudo fora e fugir com você.
_ Como?! Casar?
_ Menti para você, eu tenho namorado. E temos casamento marcado para dezembro.
_ Nunca saberei quais são as duas ideias mais românticas que existem. Aliás, não importa mais.

Ele a segura pelos pulsos, ela resiste. Ela a olha nos olhos, dominante, ela cede. Ele então leva o pulso dela a boca, ela fecha os olhos antessentindo a dor...

_ Não sei o que há de tão especial na realidade se as pessoas só reclamam dela. E, quer saber, [Com um sorriso obscuro, beija seu pulso. Aliviada abre os olhos. Então, ele a morde de leve feito um ai] que se dane! Eu te amo!

Vira as costas e entra no Portão de embarque, enquanto ela fica lá, com eu-também-te-amo grudado na garganta.