Deus aos trinta

Durante um bom tempo deus deixou de existir para mim. Já faz 15 anos que saí da igreja, e esse foi um tempo somente meu, onde agi sob o comando da minha vontade, cai de cara na vida, não só de cara, de corpo inteiro e foi lindo.

Eu não estava sozinho, tive amigos, família, amores. Mas não era o tempo todo, ninguém é unipresente na vida de outra pessoa e isso é bom, aconteceu portanto que vez ou outra todos faltaram (mas não falharam), porque é assim mesmo, em diversos momentos não estive com eles, gosto da solidão; e me sentia sozinho muitas vezes, isso me deu força e autonomia. Hoje sei que deus não permitiu minha morte, mas de resto era somente eu, não havia conforto, consolo, descanso, só carne para doer, osso para roer e desejo para matar.

Lutei demais, me debati na terra, contorci o inferno, inventei meus céus, enfrentei o que veio, o que inventei e o que simplesmente entrou no meu caminho, segui em frente. E quando mudava de ideia não tinha a mínima vergonha de me contradizer, me desfazer e dar a meiavolta; minha natureza não é ser-isso ou ser-aquilo, é deixar-de-ser, é desapegar-me e mudar, perseguir o novo com a mesma certeza de uma tradição ancestral. Meu amigo costumava dizer que se surgisse uma montanha entre mim e um objetivo, escalava a montanha, se não fosse possível escalar, dava a volta para chegar do outro lado, se não fosse possível dar a volta, rachava a montanha ao meio e passava.

Ainda criei tempo para sonhar e ajudar os outros: desconhecidos, conhecidos, amigos, parentes e até inimigos. Adoro o bem, mas também fiz sofrer inocentes, por querer ou sem querer, com remorso ou sem remorso, ainda não encontrei limites para minha maldade, vi minha capacidade para o mal, eu estava completamente livre no Espaço. Assim sofri a vida, amei, dei sentido e beleza a minha trajetória, sem deus, cheio de paixão; erro e aprendizado.

Sofri o inimaginável, de todos os tipos: rejeição, humilhação, injustiças, traição, abandono, violência, perseguição, insônia, frustrações, inimizades, dores, doenças, infâmias, perdas, solidão, tristeza, privação, frio e desamor... Não parei de caminhar, não desanimei, adorava cada sentido de estar vivo, mesmo na miséria da alma, simplesmente gosto de estar por aqui... Claro que gosto mais ainda dos bons momentos, de sorrir, de lembrar e de estar com quem amo, de brigar pelo leme da minha vida: segui buscando a eternidade, a beleza, o amor, a solidariedade, o entendimento, a sabedoria, o equilíbrio, a bondade e para completar a vida: você. Guardei do mundo sua dor e feito alquimista, dei valores a vida, segui pintando tudo de lindo. Estou aqui para deixar tudo lindo: minha história se escreve com lápis de cor.

Com minha miséria, não perdi a capacidade de sonhar, pelo contrário o sonho se alimentou de tudo isso, cresceu e foi contaminando quem estava perto de mim, muitos foram aprendendo comigo a brigar por seus desejos, a tirarem suas vidas da mediocridade, a abominarem a mesmice. Fui aprendendo com muitos a construir novos mundos de sonhos. Principalmente aprendemos a dimensão de nossa força e a multiplicação do nosso potencial quando lutamos juntos, na infantaria, um exército de crianças com suas armas mágicas imbatíveis inocentes.

Aprendemos a ser cum panis, companheiros, aqueles que compartilham o pão, isso significa que compartilhamos o cotidiano, nossas vidas. Assim como Jesus fazia, que ensinava sua fé no repartir diário do pão, ou pelo caminho, nas atividades do dia a dia, Ele não apenas viveu entre nós, mais do que isso, ele conviveu, deu sua vida e para ter a nossa, nos uniu, ele viveu o que acreditava, Jesus é cum panis.

Em todos esses momentos tive uma infinita capacidade de amar o mundo, de ter fé nas pessoas. E também de odiar e aniquilar o perverso. Muitas vezes chorei, mas ninguém via, às vezes a caminho de qualquer lugar, ao lembrar-me pelo o quê estava lutando me emocionava de dor e de orgulho, às vezes de solidão, eu mesmo secava, me sorria, me doava... Eu vim justo para o mundo, unir minha geração, dialogar com as gerações passadas e libertar as que virão. Quando essa viagem acabar, quero que a Terra de boca aberta receba meu corpo de volta e me desfaça de tanto cansaço.

No meu peito cultivei um jardim, um éden feito para você, mas que de tanta batalha poderia se esfriar. Corri esse risco e em muitos momentos me vi pisando à beira desse Abismo. No entanto, ao encará-lo, rasgava minha roupa, cravava as mãos no peito e arrancava a pele, a carne, os ossos, deixava exposto o músculo sentido e gritava: “Eu agüento mais! Que venha paixão e morte, estou aqui” E jorrava sangue e cuspia fogo, do meu peito liberto saía o dragão que cuida do seu jardim, voava sobre o abismo, espantava demônios e voltava para te aguardar.

Nessa guerra, aprendi a cuidar da honra, honra no singular (nunca no plural). Fui muito feliz, não careci de condolências, tive muito amor, muitos cuidados, muitas experiências, todo o prazer de estar vivo. Sou extremamente grato a todos que cruzaram o meu caminho; cada pessoa que caminhou ao meu lado me construiu, sou feito do tempo de vida que elas compartilharam comigo. Tenho prazer só de lembrar de cada uma, quantas saudades...

Tanta gente especial. Seres belíssimos feitos de tudo quanto é paraíso: querubim, sol, pique-tá, chocolate, música, praia, criança, sorvete, algodão, bolinha de gude, terra molhada, borboleta, cachoeira, artes plásticas, catavento, girassol, nuvem, pipa, mulher, chuva, cinema, sabor, beija-flor, livro, parque, pés alados, poesia, árvore, delicinha, vento, nossa cama... Seres iluminantes, e minhas almas gêmeas prediletas: a Lu e o Rê.

A minha família são os amigos que eu não conseguiria perder: o irmão chris, a irmã vivi, a mãe pilar e o pai anchieta. É tanta gente boa, tantos amores, que de joelhos agradeço por essa dádiva de encontrar o Bem, o Prazer e a Beleza em cada casa que eu passei.

(Faço parêntesis: Aos trinta anos na Terra, fui pego pelos pés e sacudido de cabeça para baixo, depois disso, senti que não me surpreenderia mais, mas me aparece você, minha alma que eu tudo amo tomo desejo doo.)

Sinto muita saudade de tudo, sou um nostálgico confesso, amo o passado, até os passados imaginários, ou a época das caravelas, quero estar em todos os lugares, com todas as pessoas, em todos os tempos... Meu desejo existe em plenitude, eu estou ligado a tudo que há fora do tempo.

Da minha infância, saudades da rua de terra, no fim do dia a terra era eu, ao pó voltei mil vezes, maravilhas inimagináveis havia criado. Achei a felicidade nas pessoas, e não nas coisas, foi umas das primeiras lições que aprendi. Quando falo assim, tão abertamente sobre mim, é muito difícil não ser piegas, então aqui vai: sou um ser de amor. Mas não somente disso.

Minha existência está intimamente relacionada com fé, felicidade, perdão, força, sexo, poder, saudade, amizade, solidariedade, raiva, timidez, lealdade, cumplicidade, honra, burrices, mistérios, destruição, certezas, dúvidas, discernimento...

Ah, não gosto de falar mal de mim, mas essas palavrinhas boas ou más fizeram parte de mim. Algumas ainda fazem, outras caíram em desuso, e novas nasceram. Sou um revolucionário por natureza, por dentro e para fora, eu mudo.

Sou o signo da mudança, da capacidade de transformar, de aniquilar e de criar outra coisa no lugar. O erro faz parte de mim, a contradição está no meu código genético, erro para mudar, mesmo que mudar doa (de doer e de doar)

E depois de tanto caminhar, tendo vencido todos os demônios, cicatrizado e destituído da minha vida, fitando mais um abismo e pronto para a reconstruir de tudo... Estava eu - sentado na madrugada da praia - pensativo... Perdoando... Emanando amor... Inventando meus novos planos... Meditando sobre meu desejo... Tramando sobre como poderia ajudar as pessoas... Julgando meus próprios erros... Quando ouço o Inconfundível, ao meu lado:

_ Eu existo.

_ Como assim?

_ Sim, Eu Sou, estou contigo.

_ (Deus!) Ahhh, não... Agora!? Agora, NÃO!

_ Quero você de volta para Mim.

_ À essa altura da minha vida?! Depois de tudo que passei?! Você resolve existir... Ah, não. Nada disso, para voltar a minha vida, não basta existir.

_ O que quer que Eu te faça?

_ Quero respostas, para voltar a existir na minha vida, tem muita coisa a esclarecer.

_ Eu te respondo o que quiser.

_ Qualquer coisa...

_ Diga o que quer e Eu farei.

_ Não entendo porquê...

_ Quero você junto a Mim, sinto sua falta, filho amigo.

_ (.......)

_ Diga o que quer.

_ Quero saber quem sou eu.