Acho que

perdi a vergonha do fracasso

Amantes

tem gente que não gosta de um romance,
eu adoro!

Anormal

Não vale a pena ser normal.

Fudeu

não estranhe,
no amor golpe baixo é a regra.

Tente

Tentar entender as pessoas é engraçado.
Conseguir é triste.

Brilhante

_ você é brilhante como uma amante cheia de diamantes.
_ e você é brilhante como um diamante cheio de amantes.

Violenta

eu tenho uma alma violenta
que vive atacando pedras e cores
no telhado de Deus.

Fato

_ Eu sempre quis ter uma amiga assim, como você.
_ Como eu como? Assim esquisita? Ou absurda?
_ Imaginária.

Opinião:

Eu finjo que minha opinião tem importância.

...

e quero caminhar como um espírito livre,
e sofro com medo da eternidade,
mas um dia eu vou acordar e o mundo não estará lá.

ano 1986, Parte XII

Acordei com 83. E ranzinza. Odeio ser acordada cedo. Minha mãe tem a incrível capacidade de acordar às 4h30 da manhã, todo santo dia. Às 6h30h já fez todo o serviço de casa. Pra quê essa pressa toda!? Bem, dessa vez foi para me acordar para a gente aproveitar o dia. Ora, eu gosto de aproveitar o dia... Dormindo! Mas não, ela quer que eu conheça as mudanças da cidade onde cresci. O mercado municipal restaurado, a estação restaurada, a igreja restaurada, o casarão restaurado... Isto é, tudo velho pintado.
Mas no fim das contas foi bom porque minha amiga chegou logo depois e eu teria que levantar de qualquer forma. Ela chegou com a filha, sem o marido, mau sinal. Eu já não a encontrava há muito tempo. Há... 10 anos? Gente, foi tudo isso mesmo? 10 anos!? É... Desde o nascimento da filha dela. Quer dizer, desde o batizado, eu fui madrinha! Devo ser uma péssima madrinha mesmo. Acho que minha mãe tem razão, eu deveria vir mais vezes.
Estava na cozinha preparando o café-da-manhã do espoletinha, quando minha mãe foi buscá-las na porta. Poucos segundos se passaram até que voltou com as duas pelas mãos.
_ Ooi! Linda! Que saudade de você!
_ Ahhh, meu amor! Que saudade!
E nos demos um daqueles abraços bem apertados, constrangedoramente longo pra quem está em volta, estranhamente íntimo pra que está envolto.
_ E aí? Como você está?
_ Estou com dois filhos, um deles endiabrado, o mais novo - Acho que fiz aquela cara de mãe em fim de festa infantil, ela riu em solidariedade. E você, amiga?
_ Eu estou com uma menina, mosca morta, e dois meninos. E – sussurrou pra mim – sem marido.
A menininha abaixou os olhos, a minha amiga claramente não tinha ideia dos traumas que ia causar naquela criança. E completou em alto e bom som:
_ Essa menina não faz nada, só fica parada no canto, olhando pras coisas, lendo... Nas festas não brinca normalmente com as outras crianças, no máximo organiza as brincadeiras, distribui os papéis entre cada criança, explica as regras e se aborrece quando uma não faz do jeito que ela quer. É uma mosca morta mesmo, não foi a mim que ela puxou.
_ Eu acho que é uma princesa. - Falei olhando para ela - Uma menininha linda e muito inteligente assim não é para ficar rolando no chão, talvez ela consiga ensinar modos ao meu filho, que parece um bichinho do mato, ou palhaço de circo, mas é muito inteligente e divertido também, e adora livros.
Aí minha mãe resolveu entrar na conversa.
_ O que esse menininho precisa é de umas boas palmadinhas para ficar sossegadinho. Daqui a pouco ele acorda, aí acabou a nossa paz. Ele é o príncipe mesmo, faz tudo que quer e me deixa louquinha louquinha. Ah seu eu pego ele, endireito num instantinho.
Aí a leonina tomou conta de mim:
_ Mãe! Se você encostar no meu filho, eu nunca mais piso aqui.
Fui tão grossa, desproporcionalmente estúpida, que minha amiga ficou constrangida e pediu licença para ir tomar banho, deixando a menina comigo e minha mãe, que fez cara de ofendida e saiu sem dizer nada. Probleminha dela.
Ela, a mosca morta, estava com os olhos baixos, como se tivesse encarando um vão sob seus pés. Tadinha - por um segundo achei que ela fosse enterrar a cara no chão. E segurei sua mão com carinho.
_ Sabe o quê que é? Não posso ver nenhuma menina ou menino tristes. Eu defendo as crianças com toda força, igual uma leoa quando vê seus filhotinhos ameaçados. Se você quiser posso te defender também, para ninguém te fazer mal ou machucar você. Eu não vou deixar ninguém incomodar uma princesinha como você...
Ela olhou para mim e sorriu, tão desamparada. Eu me vi naquela criança, essa é a verdade.
_ Seu filho realmente é um príncipe, faz tudo que quer?
_ Você já leu o Pequeno Príncipe?
_ Já li, era o livro que eu mais gostava.
_ Era? O que houve? Não gosta mais?
_ Gosto sim, muito. Mas estou lendo Peter Pan... Aí agora estou em dúvidas de qual é o meu predileto.
(Predileto? Uma criança de 10 anos que fala predileto. Ela é estranha mesmo.)
_ Ah, o Peter Pan... Escolha difícil mesmo. Eu tenho sorte porque tenho os dois.
_ Ninguém tem o Peter Pan, nem o Pequeno Príncipe...
_ Assim como ninguém tem uma princesinha, mas eu estou olhando para uma.
_ Eu não sou uma princesinha, sou uma mosca morta. Não sirvo pra nada.
_ Às vezes, quando a gente é uma menina, não sabemos tudo que somos. Muita coisa fica escondida, desde que éramos bebezinhos, depois conforme a gente vai crescendo essas coisas vão se revelando... Mas no fundo a gente sente alguma coisa dizendo que somos especiais, não é? - Seus olhinhos brilharam.
_ Hum... Igual à Cinderela? Ela era maltratada pelas irmãs, não sabia que seria uma rainha um dia...
_ Igualzinho. Às vezes, também, alguém olha pra gente e entende tudo que está acontecendo com a gente e vem ajudar, igual à fada madrinha. É porque as madrinhas sabem que a gente tem um coração muito bom.
_ Eu vejo que você tem um bom coração. - Ela falou isso com tanta pureza e esperança, que quase chorei num cantinho. E é minha madrinha.
_ Eu te olho e sei que você é muito especial, uma princesinha de verdade, que um dia vai achar seu castelo e seu príncipe encantado. - Enfim ela sorriu, igual criança.
_ Seu filho não é realmente um príncipe, é?
_ Ele é um príncipe extraordinário. Por dentro ele tem o coração do Pequeno Príncipe, mas ainda não sabe disso. É bagunceiro e agitado igual ao Peter Pan. Sabe por quê?
_ Por quê?! - Ela verdadeiramente queria saber.
_ Porque não tem nenhuma princesa para acompanhá-lo nas aventuras e ensiná-lo a se comportar como um príncipe de verdade. - Seu rosto afogueou, ficou da cor da pitanga. Abaixou a cabeça e começou a rir.
Eu ri também, mas mudei de assunto porque, só com a ideia, ela já estava envergonhada. Perguntei se estava com fome, ela consentiu com a cabeça. Comecei a preparar o café da manhã, enquanto perguntava sobre ela, botei o pão e o achocolatado na mesa. E me sentei.
_ É o café da manhã preferido dele.
Ela estava faminta, mas, muito educada, não havia pedido nada. Ela não queria mudar de assunto, queria saber mais e mais sobre ele. Só quando perguntou o nome dele que a ficha caiu e percebi que os nomes dos dois eram palíndromos.
_ Você sabe o que é um palíndromo?
_ É aquele bicho assim? - aí ela fez um gesto com os dedos tamborilando na mesa e se eminhocando toda...
_ Não, esse bicho aí é uma centopéia. Eu acho.
_ Ah, nesse caso nunca ouvi falar em palímodro.
_ Palíndromo.
_ Ai, o que é?
_ Seu nome é um.
_ Ahn?! - Fez uma cara muito ofendida, misturada com aquela de mosca morta. Se é que existe isso. Mas logo desfiz a ofensa.
_ O nome do meu príncipe também é. São nomes muito especiais, porque são palavras mágicas que podem ser lidas de trás pra frente que fica a mesma coisa. - Alcancei um papel e caneta no aparador da cozinha e escrevi o nome dela e o nome dele para ela ver. Escrevi também Acaiaca e “a sacada da casa”...
_ Nossa! Que legal.
_ É, só meninas, meninos e lugares muito especiais têm nomes assim.
Foi quando me virei e vi meu Peter Pan parado atrás de nós com a cara amarrotada, marcada e amarrada. Ele soltou um “Ô mãe!” inconfundível, com ciúmes do seu lugar, seu pão, seu achocolatado e, assim espero, de mim. Era a indignação em pessoinha.

ano 1986, Parte XI

Varanda. Madrugada.
Eu dormi, esse é o som do carro dele, em alguns segundos vai parar aqui na porta. Ai, acho que acabou o descanso. Lá vou eu, de novo, abrir aquele sorriso convincente. Às vezes, na vida, a gente acha que está feliz. Mas não... Alguma coisa não... Não sei. A felicidade pode enganar. Essa vida feliz pode esconder... Argh! Será que são os meus hormônios? Não faço sentido.
O que eu posso ter contra essa felicidade? Sempre que repasso pelo check list, está tudo okay. Marido okay, sexo okay, bem, melhor que okay para 15 anos de casada, filhos são mais do que mereço, mais do que aguento. Aliás, meu amorzinho também, ele é melhor pai do que eu jamais poderia ser mãe. E olha que as mães já saem na vantagem. Eu acho que não estou fazendo nada da vida e ao mesmo tempo sinto que estou carregando um peso enorme. Estou tão cansada. Não quero pensar em como seria minha vida se não tivesse casado. Droga, dizer isso faz justamente o efeito contrário. Meu cérebro tem um sério defeito, ele costuma ignorar os não. Principalmente de frases importantes. Agora vou ficar nas reticências, não pensando em como seria minha vida se fosse solteira...

Eu não faço a mínima ideia de como... Eu não tenho coragem de falar com ele. Sequer saberia o que dizer, acabaria deixando ele confuso também. E hoje são as certezas dele que me dizem onde estou no mundo. Eu vou acabar a vida inteira aqui, estou uma bagunça. Eu sou um labirinto. E mãe de dois filhos, uns pestinhas que não me deixam em paz um segundo. Graças a Deus acabei desenvolvendo a habilidade de não acordá-los. Ou acordá-los calmamente. (Ainda não desenvolvi a capacidade de ignorá-los) Isso não é por ser boa mãe, é só pra manter a sanidade por mais uns minutinhos.

Acabei de colocar meu filho mais novo na cama, enquanto meu marido se instalava e guardava as malas no meu antigo quarto. Ficar nesse quarto me deu ainda mais o que pensar sobre como seria a vida se não tivesse casado tão jovem... Hajam reticências. Se ele fosse um homem ruim para mim, pelo menos eu teria um bom motivo. Realmente sou feliz no que depende dele, mas ser feliz não depende disso. Passo meus dias pensando nele e nos meus filhos, fazendo de tudo para ficar tudo perfeito e, de fato, não tenho do que reclamar. Acabo me sentindo culpada por me sentir insatisfeita com o que temos.
Voltei à varanda, onde ele me encontrou com olhar inquiridor. Eu não digo nada, acho que ele sabe. Entrou de volta para casa, com certeza ele vai ficar escrevendo naquele caderninho. Sabe quando preciso ficar sozinha alimentando meus dragões. Era tão bom quando ele chegava e tudo isso desaparecia. Eu me perdia no seu jeito apaixonado de ver o mundo, comigo no topo. Agora, estou tão acostumada ao topo que quero saltar. Tenho a vida que dessa varanda tantas vezes sonhamos em ter. Só não tenho os mesmos sentimentos.
Onde foi que me perdi?
Vou dormir, amanhã é um dia feliz, vai chegar minha amiga com a família. Vai ser muito legal todo mundo junto de novo. Tomara que nossos filhos herdem nossa amizade, sempre achei isso bonito, os pais serem amigos, os filhos serem amigos... É, vai ver eu tenho salvação.
Gostaria de me sentir perdidamente apaixonada de novo. Mas não por outro homem (nem mulher). Tive sorte. Casei cedo, mas antes namorei muito. É claro que homem e menino são coisas diferentes. Namorei muito menino, adolescentes, assim como eu. Mas dá pra saber que tipo de homem cada um seria, assim como o menino que me apaixonei acabou se tornando o homem que casei. Agora ele lida com todos os assuntos sérios e chatos da vida, mas tem o mesmo tom sonhador com tudo e foi por isso que acabei me traindo e casando.
Digo me traindo porque desde criancinha dizia que nunca iria me casar, teria uma profissão e viajaria o mundo. Traí tudo isso, fui vítima da mesmice da vida: engravidei e casei e fui feliz pra sempre. Uns anos depois tive esse menininho que em tudo me lembra o pai dele. Eu não poderia ser mais feliz com os filhos que tenho. Mas que me traí, me traí.
Não dizia que nunca me casaria por capricho infantil: meus pais eram péssimos, viviam brigando, gritando, se esbofeteando e chorando. Também viviam brigando, gritando, esbofeteando a mim e meus irmãos e nós acabávamos chorando escondidos pelos cantos. Eu não tinha 5 anos quando pensei que nunca iria me casar. Então, já mocinha namorava um, depois outro, mais um, mais outro e seguia assim, não me apegando, terminava por qualquer probleminha, nunca havia um namoro que sobrevivesse ao fim da paixão, ao primeiro sinal de defeito acabava tudo e mais um pobre coitado da fila acabava fazendo a besteira de se apaixonar por mim. Eu avisava antes como eu era por desencargo da consciência.
Eu demorei a entender isso. Não foi assim consciente, não lembro de como me explicava esse comportamento, somente ia fazendo. Só depois de casada é que compreendi isso. Acho que entendi quando ele disse durante a nossa primeira discussão que preferia me ver feliz a ter razão. Às vezes dá vontade de bater nele de tão certinho, o cara está sempre certo, que raiva! Não consigo brigar seriamente com ele, não que esteja tentando. Foi quando eu vi que não precisava ser daquele jeito de meus pais... Mas ainda há um dragão no labirinto.
Quando eu fui para o quarto ele estava dormindo com o caderno sobre o peito. Ele não me deixa ler o que escreve. Sei que no casamento temos que respeitar a individualidade, a privacidade e o espaço do outro. Mas que se dane, quem vai ser hipócrita por me condenar!? Eu tirei o caderninho do peito, com todo o cuidado, e li mesmo. E, naquela madrugada, ele - conseguiu de novo – fez tudo isso desaparecer.
Dormi com 18 anos de novo.
(continua...)

ano 1986, Parte X

A sacada da casa. Aquele dia.

Eu acordei já à tarde, dormi a manhã toda, sequer almocei. Fiquei um pouco dolorido de tanto ficar na cama. Ainda meio sonolento me movi com a intenção de levantar, mas entonteci e desisti, então fiquei na cama mais um pouco. Estava no quarto do segundo andar, cujas janelas abrem-se para a varandinha do fim do corredor. Dali ouvi a voz do meu filho, conversando com alguém... Uma menina? Levantei, curioso, olhei pela janela e vi os dois, debruçados no parapeito, estavam olhando o morrote à frente, onde costumava passar o trem. O mesmo trem que eu olhava com minha linda da namoradeira e que tantas vezes levava as lentas tardes de domingo a este sonhado futuro.

Da janela mesmo eu perguntei _ Você é amigo dela?
Ela levou um susto, depois enrubesceu, tímida e saiu correndo.
Ele sorriu para mim, olhou para ela sumindo pelo corredor e disse
_ Ué [que significa que pergunta boba], sou ué [pergunta boba mesmo].
Aí eu vi que o caso era sério. Saí da janela e fui para a sacada, continuar essa conversa. Eu queria mesmo era provocá-lo um pouco mais, então insisti.
_ Mas vocês são amigos há muito tempo? Você nunca me apresentou a ela.
_ Ô pai, você roncou o dia todo, onde já se viu conhecer alguém dormindo?! – Dei o braço a torcer, dormi muito tempo mesmo.
Ele olhou muito sério para mim e resolveu contar.
_ Ela é minha melhor amiga. – Emendou o “amiga” com aquele sorriso feito dos olhos mais sapecas que já vi.
_ Nossa, então vocês devem se conhecer há muito tempo.
_ É, muito tempo mesmo, um dia inteirinho, ela chegou cedinho e com muita fome.
Fiquei pensando de onde ele tirou essa mania de falar diminutivos, deve ser a avó estragando meu filho.
É claro que toda criança quando faz um amigo novo, ganha um ar de paraíso, mas ele odiava conhecer meninas. “Elas são chatas, vivem se pintando, andam com boneca para cima e pra baixo, são cheias de segredinhos, elas não sabem lutar, não sabem jogar futebol, meninas são chatas.” Ele concluía.
Não posso dizer que discordo completamente, por isso achei muito estranho que ele estivesse com uma nova melhor amiga, uma menina! Tinha alguma coisa diferente nesse menino.
_ Desde quando um dia inteiro é muito tempo? Um dia não é nada – concluí.
_ Ué [mais uma vez ele ia falar uma coisa óbvia], ué, pai, eu posso comer o dia inteiro?
_ Não.
_ Por que?
_ Porque é muito.
_ Eu posso jogar Atari o dia inteiro?
_ Não.
_ Porque você diz que é muito tempo, né pai.
_ É. – Já tinha percebido que ele tinha uma ideia prontinha na cabeça.
_ Eu não posso ver tevê o dia inteiro, “porque é muito tempo” - Disse me imitando. Não posso brincar na rua o dia inteiro, “porque é muito tempo”. Ué, um dia inteiro é muito tempo pra tudo que eu gosto de fazer...
Não tinha jeito, era irremediável.
_ Eu estou brincando com ela desde manhãzinha...
Perdidamente irremediável.
_ A gente já se conhece o dia inteirinho, então agora ela é amiga. A minha melhor amiga.
(Tadinho)
_ Ela é sua amiga mesmo?
_ Ela que falou isso, foi ela que disse que ela é minha amiga. Ela é minha amiga há muito tempo, porque para tudo o que eu gosto, o dia inteiro já é muito tempo.
É uma pena que muito tempo fazendo o que a gente gosta passe tão rápido.

Foi aí que a mãe dela chegou, sorrindo com aquele ar de mãe que entende tudo e também com aquele olhar de menina, com a menina pela mão. E disse para ela:
_ Esse é o pai dele, fique aqui que eu vou conversar com ele lá embaixo.
_ Oi, muito prazer, eu sou a amiga do seu filho.
_ Que menina linda, vocês são amigos? Que bom...
A mãe dela foi me interrompendo:
_ Deixe eles dois, deixe que brinquem sozinhos. Vem conversar comigo. A sua linda foi fazer compras com sua sogra. Tenho que lhe contar uma coisa que aconteceu.
Eu estava obviamente atrapalhando alguma coisa, provavelmente um experimento científico, a julgar pelo cuidado com que ela me conduziu para fora da sacada da casa.
Mas eu queria fazer parte daquela alguma coisa que eu estava atrapalhando. Impossível, é inviável fazer parte de tudo que a gente ama, mas é possível ficar feliz com isso. E insistentemente tentar.
Aí ela me pegou pela mão e começou a me arrastar pelo corredor, escada abaixo, até a varanda da namoradeira. Resisti educadamente, tão educadamente que fui.
Começou a me contar tudo que perdi enquanto estava dormindo. Como pode caber tanta vida numa simples manhã?
(Ele já me explicou isso, ué. Eu sei, um dia é muito tempo.)
Ela me contou que a princípio ele não gostou da ideia de a única criança que tinha na casa, além dele, ser uma menina. Quer dizer, para ele: nin-guém [ela falou imitando a indignação dele]. Não tinha ninguém para ele brincar. Ele ficou revoltado, quis voltar pra casa, quis ir pra rua, ir pro colégio, ele queria ficar parado, queria pular na piscina, fazer cambalhotas... Ele não gostou mesmo daquilo e, ao mesmo tempo, estava completamente desconcertado, tímido, porque ela estava ali.
A menininha, pelo contrário, ficou empolgadíssima, e como ele não deu muita confiança, implicou com ele, muito. Se ele estivesse com os brinquedos, ela mexia nos brinquedos dele, se ele sujasse a roupa, ela falava da roupa dele, se ele falasse, ela imitava o jeito que ele falava, e se ele resolvesse ficar quieto, deitado no sofá, ela fingia que não estava vendo, sentava em cima dele e fazia cosquinhas até ele prometer que ia brincar com ela.
Ela era mais alta do que ele, porque era 3 anos mais velha. Se sentia uma mocinha, por ter dez anos, quer dizer, ela com dez anos, 10!, não era 9, um dígito só, mudou, era 10!, era quase uma fase completamente nova da vida, não era mais criança (como ele). Ela era praticamente uma pré-adolescente, Jesus!, quantas coisas a mãe encheu as ideias dessa menina? Ela ia mudar de turno na escola, não ia estudar mais com as crianças à tarde, agora ia de manhã para o colégio, com os alunos grandes. Até seus livros mudaram, ficaram com menos imagens e mais palavras, mas disso ela não gostou. Por que não manter as imagens e colocar mais páginas com as palavras? Ela perguntava a si mesma e à mãe, mas não aos outros, para não parecer boba. A mãe dela contava tudo isso com maior orgulho.
Aparentemente se desgostaram. Não. Melhor dizendo, aparentemente apenas da parte da implicância dela, já que ele desgostou sinceramente. Desgostou daquele sentimento assim como nosso organismo reage com anticorpos às coisas estranhas que querem invadir a gente e fazer bagunça.
Aonde ele ia, ela ia atrás, igual uma pulga, que foi o apelido que ele colocou nela, porque ela ia saltitando (pulgas saltam, né? Pelo menos ele disse que sim) e grudava nele.
É claro que por ela ser mais velha 3 anos, achava que ele era uma criança, aliás, ele era uma criança. Só que ela também.
Desde o primeiro encontro.
Ela entendeu naquele pequeno tempo em que se olharam pela primeira vez.
(Coisas que demorei a vida toda para ainda não entender nele...
Entendeu o quê? Ué, simplesmente entendeu.)
Ela já sabia ele de cor e salteado...
Eu já estava um pouco cansado de ouvir, mas sabe como é: mãe de pulga, pulgona é. E ela continuava a falar, detalhes e mais intermináveis detalhes disso, daquilo, daquilo outro. Até que eu reuni forças para pedir licença porque queria assistir ao programa de esportes na tevê.
_ Tudo bem – disse ela com um tom ofendido, mas educado e emendou: Depois eu lhe como foi o primeiro encontro deles, eu tinha acabado de tomar banho quando ele chegou na cozinha...
_ Okay, você venceu: batata-frita! Eu fico.
Ela sorriu vitoriosa e começou
_ O primeiro encontro foi mais ou menos assim
_ Olha!
Praticamente gritei interrompendo. E apontando. E levantando...
_ Minha linda está chegando. Pode deixar que ela vai me contar.
Ufa! Nesses momentos vale muito a pena ser casado. Quer dizer em outros também. Ah, eu não vou ficar me explicando aqui. Voltando ao assunto, foi mais ou menos assim que minha linda me contou depois.

Quando ele acordava ia direto para cozinha. Ele adora leite com chocolate e pão com manteiga, então quando acordava ia direto para cozinha, onde normalmente encontrava a mãe dele e tudo o que ele gosta, prontinho, posto na mesa para ele, com a cadeira dele ao lado da cadeira da mãe. Mas se a mãe não tivesse na cozinha, aí ele ia acordar a mãe, já um tanto indignado.
Imagine então que dessa vez, ao chegar à cozinha, estava sentada de costas pra ele ao lado da mãe dele uma menina! Elas não perceberam a presença dele ali, e riam e falavam sobre alguma coisa... Ah! sobre ele. Mas quando se aproximou para ouvir melhor, a mãe dele se virou e viu que ele estava ali, desamparado. A indignação em pessoinha.
A menina estava sentada no lugar dele, tomando o chocolate dele, comendo o pão dele e conversando com a mãe dele. É muito abuso!
_ Ô mãe! Agora o que eu vou comer!? E agora?! Vou ficar com fome?
Ela é tão boa mãe instintivamente, como eu jamais serei bom pai mesmo me esforçando muito. E com um simples “Ô mãe!” ela entendeu tudo! Assim, num click! E foi logo apresentando os dois, explicando a ele, essa aqui é fulana, filha da minha melhor amiga beltrana.
_ Ela chegou de viagem agora de manhã, estava morrendo de fome, a mãe dela foi tomar banho e eu fiquei aqui fazendo companhia a ela enquanto você não acordava.

A menina se virou... ela o desconcertou... se prendeu naquele olhar...
E é lindo e talvez um pouco triste, mas começaram a envelhecer naquele dia.

A menininha ferida por um sentimento novo pensou que ele também estivesse morrendo de fome e foi logo a oferecer seu pão, seu achocolatado, seu lugar, seu abraço, seu nome... Talvez em solidariedade, talvez obedecendo ao seu instinto maternal, talvez por educação, talvez não… Talvez por não suportar aquele olhar indefeso.

ano 1986, Parte IX

Ele passou a viagem inteira contando os postes, os bois, as faixas da pista, os carros – organizados por cor, claro, tem mais carros brancos do que todos os outros, sabia? Contava também as rodas dos caminhões, os ônibus classificava pelas placas, ia lendo outdoors, placas com os nomes das cidades onde passávamos... Ele queria tudo. Por ele entrávamos em todas as cidades, parávamos em todos as lanchonetes da estrada, comprávamos todas as lembrancinhas. Ia tirando fotos de tudo, tudinho mesmo. Nunca vi alguém gostar tanto de viajar assim.
E mostrava seus brinquedos aos outros carros e brincava com o vento pela janela com a mão do lado de fora como se fosse um avião. Depois se jogava para o banco de trás, deitava com as pernas para cima. Dançava com os pés como se fossem dois brinquedos, ria de tudo, ria de si mesmo principalmente, ria de mim mesmo de preferência. Quando perguntei o que ele estava fazendo, ele respondeu, _ Dançando na Lua, ué! - como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
Tudo era feliz, contagiosamente feliz.
Eu não sei como consegui me aborrecer com ele, devo ser um péssimo pai.
Assim que entramos no carro perguntou se estava chegando. Depois de dez minutos, perguntou se eu estava gostando da viagem, e depois de cinco minutos perguntou se eu já estava com saudades de casa, e do que eu mais sentia falta, e se queria voltar, e se...
Ele já saiba a resposta de tudo, porque sempre viajávamos juntos. Ele aprendeu em algum lugar que se vai sentir tanta falta de alguém ou de alguma coisa é melhor levá-la junto de si sempre. Desde então diz que eu não posso viajar sozinho, para eu não sentir falta dele. Aí eu pergunto quem ele levaria numa viagem.
_ Ninguém, eu sou só uma criança ué.
Ué significa que pergunta boba essa.
Ele apontou para fora da estrada e perguntou _ O que é isso?
_ É um plantação de abóbora – respondi.
Imediatamente ele gritou espantado: _ Abóbora?!
Ele estava tão surpreso, como se eu tivesse falado plantação de bebês ou coisa pior.
_ Eu nunca mais vou comer abóbora, eca! [Fazendo cara de nojo] Abóbora fica no chão?
_ É ela cresce no chão.
_ O chão é sujo, não podemos comer nada do chão, vou contar para mamãe!
E depois disso, nunca mais comeu abóbora de novo, e antes adorava carne moída com abóbora. Desde então, prevendo que isso iria acontecer, tomei muito cuidado.
_ E isso é plantação de quê?
_ É plantação de chiclete ping-pong tuttifruit.
O predileto dele. Mas ele olhava com aquela cara de interrogação, quase medo, Acredito ou não acredito?, ele pensava. Aí eu sorria e ele sabia que era brincadeira, e sorria também aliviado, abóbora tudo bem, mas chiclete! Ah, não, chiclete não vem do chão, deve cair do céu.
Ahhhh, quantas saudades vou sentir dessa criança, ele vai crescer, vai usar seus pés apenas para pisar.
Suas perguntas não buscavam respostas que satisfizessem uma criança de sete anos, ele perguntava até me deixar com dúvida, aí eu me virava para Deus e perguntava também. E Deus, não tendo a quem perguntar, desconversava.
Aliás, Deus era o assunto predileto dele, era como um super herói que realmente existia, mas que não gostava de ser super herói e deixava as coisas ruins acontecerem, mas ajudava por baixo dos panos. Até porque, se nada de ruim acontecesse, como Ele seria herói? Ihhhhh, a explicação dele sobre Deus era muito estranha. Acho que não era bem assim, tenho que perguntar de novo para ele.
Queria tanto lembrar cada momento, meu filho mágico. É claro que eu sou um pai babão, acho tudo lindo. E cansativo. Até sinto inveja dessa felicidade. Mas não consigo deixar de pensar que ele seja mais do que simples cores pintadas por mim, ele vem com tudo novo, felicidades que eu não ensinei.
Talvez por isso eu tenha resolvido escrever sobre ele, para não me esquecer de ser feliz. Para lembrá-lo quando já for gente grande e já tiver esquecido para quê servem os pés.
Como eu vou ficar triste se um dia encontrá-lo comendo abóboras.
Vou ficar mais triste ainda se ele se esquecer como voar.

Agora a gente está chegando ao nosso tão perguntado destino, em Minas Gerais, a casa da minha sogra, para ele simplesmente vovó. A propósito para ele tudo é simplesmente.
É madrugada do dia 29 de dezembro, minha esposa e o nosso filho mais velho já estão em Minas há uma semana. Ela está de férias e eu, não. Por isso vieram antes para visitar os parentes e amigos de infância dela.
É uma pena que ele esteja dormindo, vai perder a chegada, ele adora quando estamos chegando a algum lugar, fica a observar onde veio parar. Mas se for acordado, fica com raiva e mal humorado . E não é uma raiva qualquer. É uma raiva e mau humor profundos, fica caladão, todo sério, nada de brincadeiras.
_ Isso é muito sério - ele diz pausada e exageradamente. Se me acordar de novo, eu morro.
Acho que puxou a veia dramática da minha sogra, que sempre faz o maior drama com tudo e vive dizendo que está morrendo. Há séculos ela diz que está morrendo disso, depois daquilo. Promessas vãs.
Chegamos ao sobrado da boa vista, sinto uma nostalgia muito grande nesse lugar. Foi aqui, no aniversário do irmão dela, meu melhor amigo, que a conheci e me apaixonei. Tantas noitinhas passamos nessa varanda, na namoradeira, conjeturando nosso futuro, caso ficássemos juntos. Queríamos ter filhos, claro, mas nunca poderíamos imaginar dois filhos assim. Testemunhar a vida das pessoas que amo é o meu maior prazer. Ainda mais essa vida tão novinha, onde cada novidade parece uma invenção, ou sorvete de chocolate, ou fazer um gol!
O sobrado está silencioso feito uma assombração. Ah, minha linda está na varanda, dormindo na namoradeira. Ela, melhor do que ninguém, sabe como acordá-lo sem que ele perceba que foi acordado. Ela acorda, tem o sono levinho, meu bem. Abre um sorriso que emurchece cem anos de saudades, acena, se espreguiça e desce as escadas correndo. Não sei de onde ela arranja fôlego para tantos beijos, definitivamente tenho que parar de fumar, como ela ainda pode me amar tanto? Eu devo ser a pessoa mais amada do mundo... Quer dizer depois de meus filhos... E sobretudo depois dela, é claro.
Lá vai ela com ele nos braços, poderia viver mil anos feliz só com a lembrança desse dia.
Agora vou dormir também.

Fim.


Ah, antes que eu me esqueça:
Antes de sair de casa, ele pegou seus itens de primeira necessidade, um cobertor de flanela, um travesseiro em forma de gato, um cachorro astronauta, que é o que ele vai ser quando crescer.
_ Mas você vai ficar latindo, meu filho?
_ Não, né, pai – respondia ele com toda paciência pedagógica. Para isso eu não preciso crescer ó, au au au!