Ext. Praça. Alta madrugada.
Ainda há um pouco de gente, os restos da festa da virada agora estão visíveis no chão. Os dois estão deitados na praça, alternando o olhar entre o céu e alguma coisa que chame atenção na rua. Parecem um pouco cansados.
_ Ganhei! Três a dois pra mim.
_ Ganhou seu jogo imaginário.
_ O choro da perdedora.
_ Choro imaginário, seu chato!
_ Viu!
_ “Viu” o que?
_ Admitiu que sou chato.
_ Nunca neguei isso. Eu sou a pessoa legal aqui.
_ Também não exagera. Acho que nos damos bem, só isso.
_ Só?
_ Não. Além disso eu me sinto a vontade com você.
_ É porque eu te faço se sentir uma linda mulher.
_ Não, você me faz me sentir uma mulher bonitinha.
_ É, definitivamente a gente não tem assunto.
(silêncio)
_ Geralmente me incomoda ficar em silêncio com alguém, mas com você é confortável.
_ Lógico evidente, é porque parar de falar besteira é aliviador.
_ Não, bonitinho, ou melhor, seu bocó, não é isso.
_ Claro que é, você passou a metade da noite pedindo bochechas novas.
_ É, foi isso que pedi de ano novo, bochechas.
_ Uns querem amor e vestem vermelho, outros dinheiro e vestem amarelo, não sei porque tanta gente pede paz, a julgar pela quantidade de gente de branco, mas você quer bochechas. Qual a cor que alguém veste para obter bochechas?
_ Minha calcinha é amarela.
_ Amarelo é para dinheiro, bocó.
_ Por isso mesmo, dinheiro para pagar pelas novas bochechas.
_ Mas como você sabia que ia precisar disso? Estava em casa se arrumando e pensou, vou conhecer um rapaz que vai me fazer tão feliz que vou precisar de bochechas novas.
_ Não é o que todas as mulheres sonham antes de sair de casa?
_ Ahnnn, acho que não... Mas você me ama mesmo.
_ Agora eu te amo? De onde tirou isso?
_ Ama. Só uma mulher profundamente apaixonada vai achar que todas as mulheres antes de sair de casa sonham em me encontrar.
_ “sonham em me encontrar”, que engraçado.
_ Ahn?! Eu não acho que sonham em me encontrar.
_ Não é isso, não notou? “Em me” é um palíndromo.
_ Uau, um palíndromo.
_ Uau, um palíndromo.
_ Uau, também é, que legal. Adoro palíndromos.
_ Você gosta mesmo de palíndromos?
_ É, eu gosto muito da ideia de uma coisa ser a mesma coisa ao contrário dela mesma, ou o seu avesso ser igual ao avesso do avesso do avesso do avesso, entende?
_ É, eu gosto muito da ideia de uma coisa ser a mesma coisa ao contrário dela mesma, ou o seu avesso ser igual ao avesso do avesso do avesso do avesso, entende?
_ Entendo... desde que você não me diga que o nome do seu filho vai ser um palíndromo.
_ Ah! Boa ideia!
_ Ah, que má ideia!
_ Por quê? Eu gostei.
_ Porque o nome seria Mussum.
_ Gostei.
_ Ai, Jesus! Você gostou de Mussum?
_ Não, zé ruela. Gostei de você saber palíndromos, já podemos casar.
_ Claro, bom motivo para casar.
_ Claro mesmo, melhor do que casar por interesse.
_ Melhor do que casar por amor?
_ Amor é demodê.
_ Bom, se é assim...
_ Já pensei em tudo, podemos morar em Acaiaca, que é uma cidade mineira e palíndromo, na rua Laura N, outro palíndromo, a sacada da casa, pode ser seu lugar predileto.
_ Ah, conheço Acaiaca, tenho família lá. Você realmente pensou muito nisso.
_ Pensei em muitos palíndromos.
_ Muitos palíndromos pra você viver feliz e criar o Mussum. Que aliás vai odiar palíndromos, aposto.
_ Podemos pensar em outro nome palíndromo, mas se não houver, vai ser esse mesmo, ele que odeie.
_ A cara rajada da jararaca, pode ser o apelido da minha sogra...
_ Ela vai ter que conviver com isso.
_ Na casa, colocaremos um letreiro Ame o Poema.
_ Ah, que lindo. Amei! E devo adimitir que tem razão: eu te amo.
_ A pateta ama até tapa...
_ Ah, mais um! Amo mesmo. Só não gostei do apelido da minha mãe.
_ A sogra má e amargosa?!
_ Ahhh, outro... Tô sem fôlego. Você ganhou... (pausa)
_ Continua falando, estou me sentindo tão normalzinho ao seu lado...
_ O fato de eu ser maluca, não te transforma automaticamente numa pessoa normal.
_ Eu não me transformei numa pessoa normal, só me senti uma.
_ Igual quando você se sentiu uma linda mulher?
_ Igual quando você se sentiu uma linda mulher?
_ Chega! Você está me torturando com isso, todo assunto irá parar numa linda mulher?
_ Iria.
_ Iria não. Com certeza irá falar para sempre sobre isso no meio dos assuntos.
_ “Com certeza”, se a gente tivesse assunto. Por que você não explica e a gente passa dessa fase no nosso jogo? Eu brinquei muito com isso, mas realmente quero saber.
_ Se é pra passar de fase, eu falo.
_ Você se convence por qualquer argumento.
_ Não é qualquer argumento, passar de fase é uma coisa muito importante. Eu não consigo largar o video game enquanto não passo de fase.
_ Você se convence por qualquer argumento.
_ Não é qualquer argumento, passar de fase é uma coisa muito importante. Eu não consigo largar o video game enquanto não passo de fase.
_ Okay, não é por qualquer argumento, tem que ser um argumento absurdo.
_ Não sei qual é o absurdo. Ninguém gosta de game over.
_ Espero que sua explicação seja muito boa, porque senão game over pra você.
_ Game over para nós dois.
_ Para mim não. Eu posso viver me sentindo uma linda mulher.
_ Pode sim, pode até se filiar ao sindicato das profissionais do sexo.
_ Eu vou, desde que o Richard Gere vá me regatar depois.
_ É, ele está quase indo. Só falta achar a bengala para sair de casa.
_ Ele é lindo que qualquer jeito.
_ É, o vovô já passou de todas as fases, está prestes a zerar o jogo.
_ É melhor você passar de fase, porque você não é nenhum jovenzinho também, explique-se logo!
_ Eu não me lembro mais qual era o assunto quando falei isso.
_ Não se lembra? Novidade... Start!!!
_ Tá bom, mala! Eu acho que nessa época tem muita gente está com a sensibilidade aflorada, com ideias sobre uma vida melhor no ano novo, seja no amor, na família, no trabalho ou ainda uma ideia melhor sobre si mesma... Acho que é um momento de inspiração, igual aqueles momentos de inspiração que certos filmes provocam.
_ Você está inspirado?
_ Estou, mas não é por causa do ano novo.
_ Estou, mas não é por causa do ano novo.
_ Você parecia muito inspirado com sua família e amigos, antes de falar comigo.
_ Ahnnn... Você tinha reparado em mim.
_ Eu?! Eu não...
_ Não? Como é que você sabe disso então?
_ Alguém me contou.
_ Alguém te contou?
_ Contou.
_ Alguém te contou?
_ Contou.
_ Claro, próximo a meia-noite houve um boato de que eu estava inspirado e você ouviu isso de alguém.
_ Nossa, como você sabe? Ouviu também?
_ Ouvi, mas era só boato. Não estava inspirado ainda, mas estava muito muito feliz.
_ Eu sabia que não devia dar ouvidos a boatos, ainda bem que esclarecemos isso.
_ É, foi muito esclaredor, linda.
_ Me chamou de linda?!!!
_ Chamei, você é uma linda mulher...
_ Puta é você!
Um comentário:
HAHAHAHA.
Ando rindo muito com seus posts.
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