ano 2011, Parte V

Int. Sala. Entardecer.
Ela está sentada na poltrona, trocou de roupas, aparentemente acabou de sair do banho. Ele está deitado no sofá com as mesmas roupas da praia. Está dormindo, enfim. Ela se levanta, se aproxima dele para acordá-lo, mas desiste, fica olhando, olhando, olhando... Resolve ir até o som, escolhe seu CD preferido da Nina Simone, põe para tocar baixinho, para não acordá-lo. Volta a sua poltrona, alcança na mesinha de centro um caderninho e lápis, acende seu cigarro e começar a escrever:
Sabe aquelas sabedorias que todos descobrem na hora da morte, em enterros, ou quando descobre a primeira ruga, e se dá conta de que seu tempo passou?
Sabe aqueles momentos de inspiração após ver um filme, ou quando acaba de se descobrir apaixonada?
Sabe?
Eu não sei.
Ou melhor não sabia...

Não sei onde foram parar minhas certezas,
não sei se mudei de ideia ou
se simplesmente esqueci as coisas em que acredito.
A cada dia tenho menos opinião sobre tudo.
Provavelmente no fim da vida vou escrever mais ou menos assim:

Eu não sei se existo ou se alguém está há muito tempo tentando me inventar.
Meu inventor,  pode parar de tentar,
porque não estou mais interessada em ser alguém,
quero a liberdade de inexistir, de não me explicar, de não ter sentido.
Chegou o momento de não ser. Deixe-me no rabisco, não me edite, não faça minha versão definitiva, não me ponha fim.
Eu não existo, lembra? Se esqueça da mim.
Nota: ainda tenho muito o quê melhorar nesse texto.
Fecha o caderninho de notas e volta a olhar para ele sorrindo:
_  Como posso estar sentindo falta dele?...
_ [Ele abre os olhos, abre um sorriso] Oi?
_ Você estava acordado?!
_ Estava? Acho que não, provavelmente foi só um sonho, ou... Sei lá. Estou sonolento e confuso. Vou dormir mais.
_ Ah, não, levanta. Você pode tomar seu banho agora, enquanto isso vou fazer uma comidinha para nós.
_ Humm, delícia. Está bem, vou levantar. [cantando junto com a música] “My baby just care for me...”
_ Ah, que lindo, você conhece Nina Simone.
_ Eu adoro, posso aumentar um pouco o volume? Não gosto de música baixa.
_ Claro, só coloquei baixinho para não te acordar.
_ Ah, que linda, já pode ser a mulher da minha vida...
_ Somente porque não te acordei?
_ Como assim somente? Não conseguiria pensar em um motivo melhor...
_ Amor, por exemplo.
_ Amor é demodê. Eu gosto muito de dormir e de sonhar e me sinto muito mal quando sou acordado no meio de um sonho... Estraga o meu humor.
_ Então é por isso que você acordou de bom humor? Qual era o sonho?
_ Era o mesmo de antes... [fecha os olhos]
_ Vai mesmo voltar dormir?!
_ Não. Eu quero comer a sua comidinha. Só estou reconstituindo o sonho para poder te contar direito.
_ Começa a contar antes que você comece a esquecer ou a dormir.
_ Está bem. [se senta em frente a ela] Sonhei que a gente se encontrava no ano novo, já era manhã do dia 1º. Mas não era aqui, era no sobrado da minha avó, em Minas. A gente estava olhando pela janela do corredor do segundo andar, contando os vagões dos trens de carga que passavam na montanha que há lá em frente. A casa estava cheia de gente, de familiares e amigos, sua família estava presente, a minha também. A     gente conversava e fazia brincadeiras, ria muito, eu sabia que nunca tinha me sentido daquele jeito antes. Você não estava do jeito que é agora, ainda era aquela menininha de 7 anos. Não vi como você era aos sete, mas tenho certeza absoluta de que era você. Eu também tinha sete anos, cabelos curtos, estava com uma blusa do super-homem e lhe dizia que o meu sonho era aprender a voar, que todos os dias sonhava com isso quando dormia; você me disse que um dia ia me ensinar. Aí o seu pai chegou e disse: estamos quase indo filhinha, se despeça do seu amigo. Fiquei com tanta raiva de você, por ter que ir embora, que mordi muito forte seu pulso, te vi sangrando, você começou a chorar e comecei a chorar também, saí correndo e me tranquei no banheiro, não quis falar com ninguém. Fiquei horas lá dentro, chorando, pensando “por quê que eu estou chorando?”. Nossos pais batiam na porta, mandavam abrir, tentavam me convencer a sair do banheiro, até que desistiram e ouvi quando todos começaram a se despedir da sua família. Estava tão envergonhado. Você bateu na porta e disse “sou eu, me desculpe, também estou com raiva, não quero ir, quero brincar com você, mas meus pais não me deixam ficar.”  Não abri. Quando ouvi seu  pai ligar o motor do carro, aquele ronco forte do motor mexeu comigo, senti uma força imensa e sai do banheiro correndo, passei por todo mundo, meu pai tentou me segurar, mas não conseguiu, fui para rua, onde vi o carro saindo, corri, corri até não sentir mais minhas pernas, quando vi já estava voando atrás do carro, gritei seu nome, você olhou para trás, gritei mais forte ainda: eu te amo!
E cai, de cara no chão, atordoado. Enquanto olhava seu carro sumindo na curva da rua, fiquei pensando: Amo? O que é isso?

3 comentários:

Tiago de Paula disse...

lu, mudei de ideia, surpresa?

Lu Morena disse...

Eu quero o txt dela pra mim.
Acordar no meio de um sonho quase dói fisicamente. Em mim, é como se estivesse sendo literalmente arrancada de um lugar, quando um pedaço vem e outro fica... aí não importa se eu dormi por duas ou vinte horas, que o cansaço é enorme de qualquer jeito. Por isso, ser acordado no meio de um sonho por alguém e ficar feliz com isso, só pode ser uma enoorme prova de amor.

Surpresa não, confusa. Mudou de qual ideia?
E falando em ideia, cade as duas dela? (viu, reclamei, tá feliz?! :P)

Adrielly Soares disse...

Que sonho lindo.
Queria ter sonhos assim.
Tem lugares que não me deixam sonhar, já outros não me deixam sair do mesmo sonho.