.Waking Life.

Só os predestinados
podem dar o abraço
mais íntimo,

sufocante
e úmido

do que o beijo dos amantes.

[19/12/2005]

Lu Morena

__ A palavra “Literalmente” tem caído em desuso, ou melhor em superuso, perdendo o sentido original.

__ É mesmo. Tive um professor que disse que uma lei tinha ficado, abre aspas: "li-te-ral-mente uma merda"! Mas eu duvido que a lei tenha, por milagre, virado cocô de verdade!

__ Usam pra falar “de verdade”. Ou quando querem dizer “em abundância”.

__ É verdade. Ou pior, literalmente!

__ Tipo “caiu o maior pé d’água... literalmente”.

__ Dá vontade de perguntar "e quanto a água calçava?"

__ Ou “levou pro ortopedista?”.

__ Tem gente que diz: “Tá chovendo canivete... literalmente”. Enfim...

__ Ah, mas “tá chovendo canivete” ninguém diz, ou diz? A idéia é exatamente de coisa absurda... A expressão não é "nem que chova canivete"? Como aquela: “nem que a vaca tussa!”

__ Então, erram em todos os sentidos!

(...)

__ Ai, ai, estou sentindo um vazio por dentro, deve ser fome de alguma coisa... Literalmente.

__ Comeria um boi inteiro? Literalmente.

__ Só se a vaca tossisse...

(...)

__ Vamos fazer um movimento a favor do uso de "metaforicamente"? Com sorte as pessoas desistem do literalmente e correm o risco de acertar mais.

__ Proponho outro termo, “literariamente”. Seria assim: está chovendo canivetes, literariamente.

__ É poético, eu gosto. De repente têm uns termos que perdem o sentido metafórico e ganham um sentido absurdo.

__ De repente, a gente faz um movimento para incluir na gramática a figura de linguagem do absurdo, aliás, figura muito popular.
__ É, mas se escreve Junto ou separado? De repente ou derrepente? Voto no primeiro.

__ De repente... Vamos analisar à luz da gramática normativa à brasileirinha. Sendo que REPENTE é a coisa e DE é a partícula e sendo "coisa" e "partícula" nomes genéricos que acabei de dar em substituição aos nomes reais das classes de palavras às quais elas pertencem. Podemos afirmar com certeza que nossas afirmações são cobertas de imprecisões, por tanto de repente é, sem sombra de dúvidas, separado, pois partícula e coisa sempre estão separadas, pois se ficassem juntas perderia o sentido existir uma classe de palavras chamada partícula. E tenho dito!

__ [risos] Eu prefiro você ao Bechara.

__ Eu também. Ele é muito careta e ultrapassado...

__ Sinto muito por ele, vamos fazer uma gramática com o seguinte nome: gramática para quem escreve.

__ Pensei que seria gramática de leigos.
__ Quem é leigo aqui?! Sinto muito se você não entendeu minha explicação.

__ "Sinto muito" é uma coisa que não diz nada, né? Sente muito o quê? Muito feliz? Muito arrependimento? Tudo junto? É uma espécie de coringa.

__ “Sinto muito” tem contexto, logo não precisa de texto.

__ Mas pode ser dito em muitos contextos diferentes!

__ Geralmente o contexto de tristeza...

__ De tristeza porque se convencionou assim, mas não é o que o texto diz! Em inglês, sorry é de tristeza, de sorrow... Lá faz sentido "I'm so sorry".

__ Será que na origem tinha mais texto? Será que sinto muito é uma contração?

__ Deve ter perdido os complementos, que nem o "obrigado" que, pelo que ouvi dizer, antes era algo do tipo "sinto-me obrigado a retribuir o favor"…

__ Mui grato a quem cortou!

__ Pois é. Ninguém deveria se sentir à vontade de pedir nada pra outra pessoa, só pra não se sentir obrigado depois...

__ Por isso minha vó dizia: “não peça o que você não pode tomar”.

__ Quem toma não se sente obrigado a nada. Logo, o simples obrigado, salvou o mundo do toma lá da cá, no bom sentido e do eterno sinto muito isso, sinto muito aquilo... Sorry.

__ Mas talvez seja isso, estrangeirismo do inglês pro português.

__ É, pode ser. Se algum dia alguém me perguntar, vou dizer que é por isso mesmo!

__ Me ajuda, escreve um pedaço da música do Boby Marley para mim.

__ Qual? “Get up, stand up: stand up for your rights! Get up, stand up: don't give up the fight!” Essa?

__ Isso, só isso mesmo, "sinto-me muito obrigado a retribuir o favor".

__ Ótimo. Depois te obrigo a alguma coisa.

__Eu nunca diria "de nada", se as pessoas ainda quisessem se obrigar a alguma coisa!


__ Quem organiza a exibição do filme do Cine Icaraí, você?

__ Pode ser, mas é a ultima vez que faço isso. Chega de atos exibicionistas.

__ Ah, por quê?

__ Porque é chato fazer o mesmo ato de novo e sempre e do mesmo jeito e de novo...

__ "Ato contínuo", de repente, adquiriu todo um novo significado.

__ Mas não é “moto continuo”?

__ É, mas as expressões compartilham contextos. E mudam continuamente.

__ Tem uma mensagem dizendo que você queria compartilhar arquivo comigo!
__ Compartilhar?
__ Compatilhar é legal.
__ Ah, cliquei sem querer em alguma coisa aqui e apareceu uma janela dizendo isso, que eu queria compartilhar um arquivo. Como eu não queria compartilhar nada, fechei o trem.
__ Hunf. Que tolo que fui, acreditei no eme-ésse-ene!
__Tolinho... Mas compartilharia minha vida com você! (se o msn tivesse essa opção...)
__ Você cancelaria, eu sei. Até porque o arquivo é grande, demora, você cansaria.
__ Que isso? Com esses diálogos, uma vida é pouco pra compartilhar.
__ Nossos diálogos sempre foram bons textos. Lembra daquele filme, Xeque-mate, com os diálogos absurdos que nem os nossos? O filme da ataraxia!
__ Muito divertido, pena que tem gente no mundo sem senso de humor e não gostou do filme. Mas... ataraxia? Que foi? Anda lendo dicionário de polissílabos?
__ É, ataraxia: é o poder de não se preocupar.
__ Aliás, deveria existir um dicionário de polissílabos.

__ De repente existe. Seria um bom dicionário... Anyway, no filme o cara fala que tem ataraxia. Eu revi há uns meses e decorei a palavra.

__ Hum, isso beira a psicopatia. Patologia de Don’t Worry, Be Happy.

__ Na verdade, ataraxia é uma coisa bonita. É algo acima do nirvana (não a banda).

__ Interessante. Então o nirvana é um tipo de psicopatia voluntária?

__ Não é porque você está violento hoje que o budismo se tornou uma patologia!

“Ataraxia é um termo ligado às correntes filosóficas gregas do Ceticismo, Estoicismo e Epicurismo, o qual é sinônimo para: Paz e imperturbabilidade de espírito; Ausência de ansiedade; Tranquilidade e impassibilidade da alma; Felicidade derivada da virtude; A experiência do ótimo, a qual leva ao prazer natural, ético e estável. Segundo tais correntes, a ataraxia é possível de ser alcançada: Atendendo-se aos desejos naturais; Ignorando-se os desejos supérfluos; Eliminando-se as paixões; A ataraxia epicurista é basicamente o triunfo da razão do homem - geralmente a duras penas - sobre a irracionalidade do ambiente que o circunda. É um estado de espírito onde o homem deixa de temer o divino, a dor e principalmente, a morte.”

__ Ah, entendi, tipo: dicionário de polissílabos!

__Tipo: se livrar dos desejos e necessidades do corpo.
__ Tipo: o psicopata está fora então?

__ É. O psicopata deve ter uma paixão o movendo, então, acho que ele fica excluído dessa.

__ É interessante observar as fronteiras absurdas. Tipo o psicopata ser vizinho do Sidarta. Aliás, sobre o absurdo do mundo, você poderia ler mais Camus.

__ ‘Ler mais’... Ou não seria pelo menos “ler um pouco”? Uma vez que não li nada.

__ Eu acho que no fundo todos o lemos, principalmente quem estranha só um pouquinho qualquer coisa que acontece hoje em dia.

__ A gente inconscientemente compartilhar idéias não significar ler! Ler é bastante literal.

__ Aqui sim caberia um literalmente.

__ Sim. Ler é bastante literal. Literalmente.

__ Muito bom poder voltar a conversar com você, mas tenho que ir.

__ Que pena. Estou com saudades.

__ Acho que isso vai me desenferrujar a escrita, ela está emperrada que dói.

__ Ah, não está não, você sempre se confunde com a minha. A sua vai bem, obrigada.

__ No fundo, você é meu oleozinho singer.

__ Você é tão romântico! Vá lá. Eu vou ficar lendo Camus.

__ Literariamente.