Um Personagem

Passo o dia pensando nas coisas mais absurdas, enquanto vou fazendo as coisas cotidianas e me distraindo com os pensamentos dos outros. Vêm a mim idéias inovadoras, revelações divinas que encontram nas banalidades verdades universais, iluminações sobre o comportamento humano, a vida após a morte, o sentido da maldade e a alma. A cada idéia parece-me que nasceu um livro, mas quando à noite sento em frente à folha, desejoso de escrever, dá-me um branco puro feito lágrima. Num segundo brota o segundo volume, no outro já vem a réplica, depois o prefácio a segunda edição, o reconhecimento e talvez até uma revolução em decorrência do impacto dessas idéias. Aí, canso só de imaginar e durmo.

Passam-se anos e percebo que para aperfeiçoar o livro devo ler mais, atualizar, corrigir, cortar excessos e estilismo, incluir a citação de outros autores já consagrados, buscar referências externas, identificar plágios inconscientes ou pior inconsistentes. Aprofundar, detalhar, explicar melhor, desenhar talvez. Mas nesse ponto, onde já domino completamente o assunto, mudo de idéia. E vem mais um dia pensando...

É incrível como este continua a ser um livro em branco. Eu fecundo um livro completo, mas não nasce sequer a primeira linha, não tem meio e fim, e fico sem meus porquês. No fim de toda a maratona intelectual o tempo vai apagando todo o esforço. Minha memória não me dá a mínima importância. Ela, melhor do que ninguém, sabe que não pode me levar tão a sério.

Aquilo que eu chamava de minha personalidade minha memória distanciou, ela vai me esquecendo... este ano parece que esqueci quase tudo, não ouço mais buarque, deixei de ir ao cinema, não leio mais tantos livros, parei de escrever, não flerto, desinteressei-me. Lembro dessas coisas que faziam parte de mim, às vezes sinto uma falta igual as das saudades dos amigos que partiram. É claro que estamos sempre em constantes mudanças, mas o problema é que tenho dificuldade em me identificar com aquela pessoa que eu fui. Meu passado se torna um amigo, não sou eu, é a história de alguém que conheço bem ou vi num filme, me contaram ou estudei profundamente, mas não sou eu.

Quando olhamos para uma foto nossa tirada dez anos atrás, impressiona-me nossa capacidade nos reconhecer ali, algumas vezes me sinto seu antagonista, aquele eu mais jovem, mais despreocupado me causou tantos problemas que minha vontade é de surrar o sujeito sorridente da foto. É um pensamento comum sentirmos vontade de falar para ele alguma sabedoria que seja útil, que evite uma humilhação, um sofrimento, alguma coisa. Eu, por exemplo, se pudesse voltar no tempo para me falar alguma coisa, iria falar os números da loteria, isso certamente facilitaria minha vida. Até porque meus erros não foram por falta de aviso.

Na verdade, imagino que esse Eu mais jovem, que me deixa com saudade, tem muito mais coisa para me dizer, alguns sonhos a me lembrar, a motivar minha revolução, a me mostrar como era fácil me entregar a fé nos outros, a apaixonar-me por tudo, ao gosto pela madrugada, ao destemor, a inabalável confiança na eternidade, a não viver sem chocolate, sorvete, cinema, música, arte plástica, pizza e não viver sem fazer a revolução, a sempre dormir ao lado de quem ama.

Pensando bem, me lembro de tudo isso, está latente em mim, preciso dar um espaço para esse viajante no tempo falar tudo o que quer.

Existe um outro personagem que sempre me visita, vem me trazer um pouco de sabedoria útil para evitar arrependimentos, é o Eu mais velho que de alguma forma está conseguindo olhar para uma foto dele mais jovem e se identificar comigo, e voltar para me dar conselhos.
Mas é claro que as coisas que ele diz fazem ainda menos sentido, do que meus livros em branco.

Se você puder imaginar o que você aos 50 anos estará dizendo a você aos 30, vai saber exatamente do que estou falando. Imagine recados como: não vá a Angola, sendo que você não tem nenhum plano de ir a Angola... É engraçado, saber como seria se realmente fosse possível esse encontro. E eu acabo seduzido por pensar nisso, sobre como o eu de 50 estará avaliando minhas escolhas de agora.

Reviver o passado ou aconselhar a própria juventude é um desejo tantas vezes almejado por tantos seres humanos, mas é somente uma esquete de comédia non sense. A não ser é claro que diga os números da loteria.

Mesmo assim continuamos a ter esses sentimentos, gostaríamos de viajar ao passado e evitar alguma coisa de acontecer, muitas vezes sofrendo por ressentimentos. Talvez uma boa maneira de se desfazer disso seja não ver pecado no passado, não ver dor, onde não há mais, esquecer-se também. Tem gente que dez anos depois ainda está magoada, fica rememorando. Deve ser algum tipo de vício, se pensarmos que vício é alguma coisa que não conseguimos parar de repetir.

Ultimamente tenho projetado em como estarei pensando sobre a vida daqui vinte anos, se estarei arrependido que não ter casado jovem, de não ter tido filhos, de não ter me dedicado a viajar o mundo enquanto jovem, de não ter buscado fortuna, de não ter escolhido me mudar para o Rio de Janeiro...

É difícil imaginar quais serão meus arrependimentos daqui vinte anos, por isso, por outro lado, se pensar em que vou me orgulhar de ter sido é mais fácil. Eu imagino que os mais velhos invejam os mais jovem: ou os bajulam ou os desprezam. É difícil encontrar aqueles que se colocam como simples viajantes no tempo. Aliás, é o que todos nós somos, certo? Viajantes no tempo.

Estamos sempre rememorando, ou projetando o futuro, estamos nesse inconstante movimento de ir e ir ao passado e ao futuro, pouco paramos no instante,. Simplesmente pouco sabemos.
No futuro, olhando para mim agora, eu teria orgulho dessa intensa luta com deus, da certeza de que faço diferença, de que cada vida tem um significado criado, de saber perdoar, de ter bom coração, dessa imensa capacidade de amar, de ser bom amante, de olhar para vida com romantismo, de não temer o futuro, de ser bom amigo, de não temer a morte... Tantas coisas legais.

É claro que há tanto sofrimento em viver, haverá dores que ainda não sou sequer capaz de imaginar, haverá tantas limitações, doenças, humilhações, decepções, privações, injustiças e outros conceitos que ainda não sou capaz de formular, ainda não passei por essas experiências. Não quero passar por nada disso, mas vendo as pessoas e lendo os jornais é difícil acreditar que está acontecendo com todos, mas eu vou conseguir um jeito que não vá acontecer comigo. de pensar nisso tudo já me canso. Começo a enxergar inutilidade de tudo, a nulidade de escrever tudo isso. Talvez por isso, mesmo que estejam aí as palavras, o livro continue em branco.

Às vezes eu acho que estamos buscando uma saída para essas coisas que todos nós sabemos que existe, toda a dor. Mesmo que você consiga acreditar que sua vida será um mar de rosas, ainda assim não há como escapar de morrer.

Buscamos a saída, na religião, na carreira, na família, na sociedade, nas artes, na filosofia, em nós mesmos, no ego, no prazer e no medo. Em tantas coisas, em Deus.

De uma forma ou de outra estamos todos nós olhando pro céu, pro universo, estamos transcendendo... Todos nos acreditamos em algum tipo de mágica, de algo superior, mesmo os ateus, esses acreditam na história, no conhecimento, na memória, no amor, isto é, em entes conceituais, que transcendem a existência física de uma vida humana.

Todos almejamos a eternidade. Pelo menos é o que Eu, daqui a vinte anos, estarei dizendo para mim aos trinta. Se eu tiver a oportunidade de viver até lá. Infelizmente irei me esquecer de tudo isso, devia escrever, mas escrever é a coisa mais difícil que eu consigo fazer.

4 comentários:

Lu Morena disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lu Morena disse...
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Lu Morena disse...

Eu queria comentar alguma coisa em cada parágrafo, mas, para isso, teria que ter lido um a um. Só que eu não consegui parar, li tudo de uma vez, e agora é muito provável que vá me esquecer de mais de metade das coisas que gostaria de escrever. Droga. Vou parar de perder tempo com esta mania chata de dar explicações inúteis para problemas inexistentes. Só espero que os comentários não tenham limites de caracteres.

Não sei se já te contei, mas eu costumava escrever cartas para mim no futuro. Era pra ter sido uma tradição de aniversário, todo ano escrever uma carta com meus sonhos e esperanças para o ano seguinte. Claro que, não sendo muito regrada, eu nem escrevia no dia certo, nem me lembrava de ler no aniversário seguinte, então virou uma coisa meio de vez em quando lembrando, lendo a carta do passado e escrevendo uma para o futuro (aliás, eu acho que tenho uma pra ler que talvez seja do ano passado, bem lembrado). O bom da memória ruim é que eu sempre me surpreendo com o que leio, para o mal ou para o bem. Não tenho nada brilhante a dizer sobre o assunto, mesmo pq não quero pensar em passado, futuro e presente. Droga. Só de não querer pensar, a gente já pensa, né. Isso me deprime. Tenho tido um pensamento recorrente de que eu não era supposed de ter esta vida medíocre. É como se eu tivesse perdido o caminho pra minha vida de verdade, que está em outro lugar. Isso não quer dizer que estou infeliz aqui, é só que não parece certo. Estou só observando, pq minha vida mesmo é outra, mas eu perdi o endereço. Às vezes acho que estou ficando muito velha, e que qdo eu chegar lá vai ser meio tarde demais... mas aí me lembro do botox, das plásticas e do aumento da expectativa de vida. Ufa.
Não era nada disso que eu ia falar.
(descobri que tem limite: 4.096 caracteres, então tive que apagar antes pra tentar arrumar. E dividir em dois, by the way)

Lu Morena disse...

O que eu queria mesmo dizer, é que antes de entrar aqui e ler este texto, eu já estava pensando em uma coisa que vc escreveu. Quer dizer, eu estava pensando em vc, fiquei com saudade e entrei no blog. Estava pensando que agora vc tem toda uma nova vida da qual eu não faço parte. Aí pensei que eu sou egoísta, pq eu tb tenho toda uma nova vida na qual vc não está, quer dizer, não fisicamente. Argui (comigo mesma,claro)que é diferente, pq eu sou a mesma e vc está aqui no meu imaginário, então é bem pior eu não fazer parte da sua vida nova do que vc não estar fisicamente na minha (tudo faz sentido na minha cabeça). O ponto importante é que fiquei com saudades. E lembrei que ler o que vc escreve sempre te traz de volta. Vc pode ter tantas novas vidas quantas vc quiser que, sempre que escrever e eu ler, será o meu Tiago de volta. Aquele das madrugadas, pizzas, brigadeiros, passeios loucos em horários bizarros, conversas de horas no telefone, enfim, você. Aí entrei no blog pra ler e quase me surpreendi com a parte do texto em que vc diz ter saudades de vc mais jovem, aquele mesmo que eu conheci e me faz falta. Quase. Pq, na verdade, não é surpresa alguma que ainda tenhamos sintonia, né?! Nada faz mais sentido! Não fosse assim, vc não seria meu melhor amigo e o mundo, aí sim, seria um lugar muito absurdo.
Às vezes, quando penso no futuro, imagino se aos cinquenta anos eu terei novos amigos, sem reconhecer os antigos. É um pensamento assustador, afinal, eu gosto dos meus amigos. Mas cada um tem sua vida, cada um segue seu caminho e, por mais que eu queria colecioná-los todos ao meu redor, não é bem assim que a banda toca. Mas eu tenho esta esperança, com uma pontinha de certeza, de que alguns estarão comigo para sempre, pq fazem parte de mim. E, por mais que eu tenha novas vidas, continuo sendo eu.
Humpf. Eu gostaria de conseguir concatenar minhas ideias em parágrafos com sentido como vc faz. Pena que as verdades que eu sinto não se traduzem direito em palavras quando sou eu que tento escrever. Vc traduz melhor o meu mundinho, mesmo sem eu ter te falado sobre o assunto. Então chega, o comentário já virou um testamento, vou resumir, dizendo que me identifiquei muito com o que vc escreveu. É mais fácil assim.
Ah, outras coisinhas, nenhuma novidade, só pra reforçar: eu te amo. E vc me faz rir. E continue escrevendo, pra eu continuar me encontrando.