Estamos mortos

Outro dia eu estava num lugar amplo, e me perguntava, que lugar é esse? De onde eu estava, olhava para frente, para os lados, para trás e não havia limite, não tinha algo que dissesse onde estava, era um lugar solto no espaço.

Havia uma multidão na minha frente, atrás de mim estava chegando cada vez mais gente. Apesar de todos estarem se dirigindo a uma mesma direção, eles estavam com o mesmo olhar perdido, talvez procurando os mesmos sinais que eu.

Acho que é o pátio de entrada para o céu, foi o melhor que pude pensar na hora. Estamos mortos. Ou será que estou sonhando que morri? Por que não tem ninguém aqui para dar informações? As memórias estão todas distantes, não consigo me lembrar da última coisa que me lembro, parece que ontem nunca existiu, só dez anos atrás pra trás; exatamente antes de chegar aqui eu estava onde? Já não é ruim o suficiente ter morrido? Não precisavam nos destratar assim.
Por outro lado, pensei, que se aqui for o inferno, não é tão ruim quanto diziam. Tentei afastar a idéia de que ali era o inferno, porque me lembrei que a minha religião diz que se a gente acredita no céu, vai pro céu, se a gente acredita em reencarnação, reencarnamos, e por aí em diante, depois de morrer vamos para onde acreditamos. Então é melhor deixar a idéia de que aqui é um céu ruim e um inferno agradável e tentar conseguir informação com alguém.

_ Amigo, desculpe incomodar, gostaria de umas informações.

_ Pois não.

_ Você já está aqui há muito tempo?

_ Não sei.

_ Mas sabe onde estamos?

_ Estava agora mesmo imaginando isso. Acho que o inferno está lotado e nos enviaram pro céu, mas pelo visto não tem vaga também. Que bagunça.

_ Eu achava que após a morte haveria paz e esclarecimentos, respostas sabe? Não um problema de estrutura celestial.

_ É melhor não reclamar, ainda bem que não tem estrutura e, por isso, o inferno está cheio. Essa confusão no céu é melhor do que a organização de um Campo de Contração.

_ Pensando bem, é uma idéia absurda, deve ser mais uma das idéias absurdas em que acreditei. Achar o sentido da vida na morte, além de contraditórias, a vida e a morte, de que me valeria saber sobre a vida agora que provavelmente estou morto. Nesse caso só me cabe concluir que a vida não faz sentido mesmo. E nesse caso, por que achar que a morte teria algum sentido?

Nesse momento, o meu interlocutor - o senhor com a teoria da falta de estrutura e conseqüente superlotação do inferno - já estava fazendo cara de quem está extremamente mais confuso com o que eu estava dizendo, do que com aquela situação toda. Resolvi parar de falar.

Para esse senhor o inferno estar lotado é uma teoria válida, mas a vida fazer sentido é uma idéia mais absurda do que estar perdido, no meio da morte, com uma multidão de olhar vago. Ufa.
Meu pensamento se voltou às pessoas de novo, olhando bem, elas estão com cara de quem está confuso com suas próprias idéias, cada um aqui deve ter uma explicação diferente, todas mirabolantes.

Deve ser super interessante conversar com cada um, mas se fizer isso vou me levar a nada. Aliás, aqui deve ser isso, o nada, quem vivia sem se interessar muito onde ia dar, dá aqui. Pronto! Nasceu outra teoria que também não vai me ajudar. Preciso achar alguém, quero falar com deus!

Pensando nisso, foi quando vi um ser passando pelo povo, descava-se porque era alto, esguio e tinha uma prancheta na mão, parecia saber onde estava e o que estava fazendo, andava como se fosse chegar a algum lugar. Na hora percebi que ele trabalhava ali, devia ser um tipo de anjo. Enfim alguém com respostas, eu já estava ficando ansioso, afinal de contas apesar de ter toda a eternidade não é assim que gostaria de gastá-la: em estado de espera no pátio dos confusos. Tenho que fazer alguma coisa.

Na hora me veio a lembrança de que eu era especial para deus, de que nada era por acaso... E considerando a teoria do senhorzinho, se me livrei do inferno e estou a porta do céu é porque deus quis assim, ele deve estar querendo falar alguma coisa comigo, e estou perdendo meu tempo aqui.

_ Anjo, amigo, oi, pode me dar um informação, por favor?

_ Isso não depende de mim, senhor. – Ele me surpreendeu com a rispidez, muito diferente da imagem que tenho dos anjos como seres amorosos. Por isso devolvi a insolência no mesmo tom.

_ Como assim? Ainda não te fiz a pergunta.

_ Por isso mesmo, não depende de mim, senhor.

_ Depende de quem, então, querido? – Eu já estava cansado da má vontade desse anjo.

_ De quem faz a pergunta. – Ele respondeu como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, me fazendo me sentir obviamente burro. O pior é que concordei com ele, lembrei de uma longa conversa que tive com uma menina que me fazia perguntas impossíveis de responder, e me culpava por não poder responder.

_ Tá bom, olha, sou o Tiago, gostaria de falar com deus.

_ Seu nome é Tiago?

_ É. Sou eu mesmo.

_ E qual é o meu nome?

_ Como assim?

_ Nome. O meu nome, você sabe?

_ Claro que não, não te conheço.

_ Então, também não te conheço. E daí que você é Tiago? E daí que quer falar com deus? Todo mundo quer falar com deus, até eu, mas tenho que ficar aqui.
A anjo realmente estava muito mal humorado.

E o meu mundinho frágil por si só, tinha acabado de criar a criatura mais cruel, essa crueltura por mais rude que fosse, não estava me atingindo com sua aspereza, o que me feria era aquela verdade, o céu era mais um pesadelo. Não estava conseguindo acreditar naquilo, e ao mesmo tempo não consegui parar que pensar nas suas conseqüências.

Deus era muito ocupado; estava regendo as leis universais, coordenando seus arcanjos e querubins, debatendo com os santos a salvação de novas almas, a validade da reencarnação e o oitavo pecado capital.

Isso só pode ser um sonho. Em que outro lugar eu estaria falando com um anjo rude? A não ser que eu realmente esteja morto. Enquanto não acordo ou ressuscito tenho que dar um jeito de sair daqui. A insistência é uma virtude de quem tem desejos impossíveis.

_ Olha, preciso entender o que estou fazendo aqui, que lugar é esse, o que é o universo, o mistério da vida, o quê ou quem é deus, qual o sentido da morte... me responde!

_ Santa paciência! Não é pouca coisa, você quer saber demais. Todo esse conhecimento está a sua disposição, mas vai gastar a eternidade para captá-lo. Não é possível chegar a ele num bate papo como esse. Imagine encontrar com um médico na fila de um banco e pedir para ele te ensinar medicina, por mais que ele tenha a boa vontade de responder todas as suas perguntas, não é assim que vai aprender. Todo conhecimento está a nossa disposição, acessá-lo é trabalhoso e um caminho penoso. Boa parte desse aprendizado se dá exclusivamente pela experiência, isso é muita dor, muito prazer, muita tristeza, felicidade e todas as categorias de sentimentos e sensações que por sua contrariedade anulariam-se. Todo conhecimento é uma espécie de vazio que abre um novo mundo e cria novas dúvidas. Assim como duas teorias contraditórias anulam-se mutuamente, dois sentimentos contraditórios jogam-se no vago, num espaço aberto. A permanência do conflito, da dúvida e da contradição é a condição básica da existência, temos a consciência das coisas porque somos capazes de pensar no seu contrário. Um conceito e uma idéia só existem na exata medida que houver seu contrário, no código genético da fidelidade está a possibilidade de traição. Por isso cada coisa que aprender aumentará sua dúvida. Satisfeito?

_ Santa sacanagem! Não pode ser assim. Morrer não deveria ser mais complicado do que viver, sonhar não pode ser mais preocupante do que estar acordado. Eu preciso de respostas claras, sou especial para deus? Ele vai me dar respostas? Quero falar com deus!

_ Olha todos nós queremos, aliás pelo que sei deus também quer falar com a gente, então deveria simplesmente acontecer facilmente, mas não acontece graças a alguma explicação que só deus tem e não fala para ninguém, então qual é o sentido de você perturbá-lo com essas perguntas. Isto é, ele nunca disse que tinha uma boa explicação para tudo isso, nós é que supomos é que ele tenha, portanto tudo é um grande mistério e talvez a resposta seja: não faz sentido mesmo, e daí. Mas se você quiser aprender basta começar a estudar... Ou inventar, virar artista, passear... Presta atenção numa coisa, para aproveitar as coisas boas, nenhuma dessas respostas é verdadeiramente necessária, se você puder se conformar em saber que ninguém nunca obteve essa resposta, talvez pare de se preocupar tanto com isso, no fim das contas embora sejam as perguntas mais importantes, suas respostas não são nem um pouco importantes. Pelo menos do ponto de vista que ninguém nunca precisou realmente delas para ser feliz, para desfrutar do paraíso, fazer sexo, escrever um livro, se alimentar, amar, ter filhos... Não é você que vai precisar delas, então relaxe. Deus não sabe seu nome, mas não se assuste, é muita gente, ele não sabe o nome de ninguém, é desolador, nós também não sabemos o nome dele, e muitas vezes o odiamos por tudo de ruim que ele permite que aconteça. É uma relação muito complicada essa que temos com deus.

_ Ah, entendi. Resumindo: aqui é o inferno, ainda não fomos transferidos.

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Um forte barulho de um caminhão passando acabou me acordando, quis tanto voltar a dormir, mas depois de meia hora tentando parecia que eu tinha tomado um litro de café, estava eletrizado e com mil pensamentos por segundo, simplesmente não conseguia parar de pensar nesse sonho. Primeiro, fiquei imaginando a sua continuação, o que mais o anjo teria a me dizer?

Ele sugeriria que eu entrasse para uma universidade celestial e me aprofundasse em algum tema, qualquer um, afinal de contas há uma sabedoria universal em qualquer coisa que pesquisemos a fundo. Isso me libertaria dessas questões.

Depois eu tentei imaginar, que após chateá-lo insistentemente ele me levaria até arcanjo, que me levaria ao querubim, que me levaria ao serafim, quem enfim me deixaria falar com deus. Mas ai sinceramente deus estava irredutível em falar sobre o sentido da vida e por mera retaliação não vou dar espaço a ele aqui. Talvez em outra oportunidade.

Mas depois desse afã criativo, lembrei que, de acordo com a psicologia, no sonho eu sou todos os personagens. Isto é, eu tenho opiniões muito fortes quando estou dormindo, é uma pena que nenhuma delas faça sentido quando eu acordo.

2 comentários:

Lu Morena disse...

Eu queria poder sublinhar textos de blog, que nem faço nos livros. Ou talvez vc devesse publicar uma coletânea dos seus textos para mim. Eu seria mais feliz assim.

Só vim dizer que, pra variar, vc me fez rir aqui. Deu vontade de compartinhar isso.

Stella disse...

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