Simples de coração

Já pensou, se um dia, de supetão, acordamos?


Você desorientada,
sem saber se é manhã ou madrugada,
se pode dormir mais ou se está terrivelmente atrasada,
espera um pouco...
Começa a ouvir os sonzinhos da manhã e
pensa em mim.

Parece que sonhou, mas não consegue se lembrar bem com o quê,
será que foi bom, foi por isso que acordei?
Como é que começamos com esse romance?
Eu tenho que trabalhar hoje?
Cadê ele?

Achei que estivéssemos dormindo juntos,
será que ele foi embora ridicularmente cedo...

Tenta recordar capítulo a capítulo, nossas cenas espalhadas na memória,
totalmente mágicas para nós e completamente banais para o resto do mundo,

assim nos amamos, como quem guarda um tesouro, um segredo, a chave de um reino encantado.

Aqui estão aquele gibi, ah olhares, um deus, o éden, hum praia, hmmm lagoa de araçatiba, o apocalipse... Acaba adormecendo com a mão no ventre...


Acorda de novo, o sol já aquece as plantinhas da janela, como elas crescem rápido.
Ai, meu santo, já é dia. Estou definitivamente, absurdamente, desempregadamente atrasada!!!

A não ser que seja sábado...

Hum que saudade...
Para com isso! O quê que é isso? Eu tenho outras coisas a pensar...
Só não consigo me lembrar o quê.

Ela cobre os olhos com um turbilhão quem vem de sabe lá: tudo lindo e bruto.
Meu deus, morri!

Resolve deixar um recadinho para ele na internet. Mas que estranho, não tem nenhum recado dele, procura entre seus contatos, mas não está lá. Pensa: estranho, por quê que ele se excluiria de mim assim?

Elabora um recado mau criado, resolve mandar pelo messenger, mas ele também não consta na lista de contatos. Aaaaarght!

O quê será que está acontecendo? Ou pior, que aconteceu? Que fiz? Pode ser que ele esteja chateado comigo. Ou talvez ele seja alérgico ao amor, raríssimo, mas uma explicação perfeitamente plausível:
_ Durante a noite se sentiu intoxicado com esse hálito perfumado que os amantes têm, e espirrou tão forte que explodiu em um milhão de partículas. Agora, porque acabei inalando uma parte importante dele, está internado no hospital, em observação, semiconsciente, querendo me amar, mas proibido. Bem... talvez, não.

Ela procura refazer seus passos, começa a se lembrar daquilo que fez; o que fizemos juntos; não é possível, não há nenhuma explicação melhor do que a pior explicação de todos os tempos. Tem um pressentimento de que algo muito errado está acontecendo. E até o seu humor começa a ressecar.

Lembra-se das fotos, palavra por palavra dos bilhetinhos que ele costumava esconder

“cheirinho de entardecer,
a janela um silêncio.
À espera, tudo calminho...
De súbito arrastam continentes,
transtornam qualquer caminho,
sufocam o dia seguinte com a memória dos corpos profetas”.
Que aperto, meu coração está pequenininho. Oooh.

Sem querer pensar em mais nada, lembra do primeiro bilhetinho, improvisado num pedaço de papel que ganhou pela janela do ônibus, “para rir, peixinhos beliscando pés”, “traga-me o apocalipse...”
Poemas do primeiro encontro. E esquece-se do resto,
vai pegar a carteira, onde o guardou e nunca mais tirou, procura o papel dobrado, “bilhete rasgado” era o nome, sorri por ter lembrado de mais um pedacinho; continua fuxicando repetidamente os compartimentos da carteira, mas onde está?!
Sem mais paciência, tira tudo da carteira, e nada, nem aqui, nem acolá!

Aquela sensação de que tem-alguma-coisa-errada sobe pela espinha como uma escuridão, parece que seus fantasmas estão de volta.

Procura pelas pessoas em casa para acusar, se alguém mexeu na carteira, mas ninguém sabe de qual bilhete está falando... Óbvio. É inútil. Qualquer coisa serve a essa altura, lembra-se então: as fotos, claro!

Volta ao computador, mas a pasta 19/12 não está lá.

Abre o email, não há nada lá também. Nada. Por que ele tem essa mania idiota de não ter celular? O cara velho é cheio de manias esquisitas.

Mil explicações absurdas começam a tomar conta do seu dia, será que Deus resolveu brincar com coisa séria; será que alguém fez isso; será que me drogaram? Ou, pronto, ele conseguiu, enlouqueci! Agora, só me sobrou esperar a Noite.

Eu vou na galeria, onde ele costuma passar após o trabalho, vai ter que me dar uma boa explicação.

Ah, quanta saudade... Tanta espera, com o saco cheio de teorias...

Chega mais cedo na galeria, olha em volta esquadrinhando o espaço, como se fosse o próprio deus desenhando aquela paisagem pela primeira vez.
Belo lugar: artes plásticas, net.café, jardim, gourmet, música, bar, mas nada, a paisagem está incompleta. Olha os banheiros, nada, vai no café, claro que nada, aproveita para checar mais uma vez a internet, facebook, email, fuxica tudo, não acha nada, como se simplesmente não houvesse nada a ser achado, se perde no tempo e sem sinal dele.

Quando vê a hora, a aula já deve ter começado! Corre para a faculdade, está todo mundo, menos quem procura. Senta-se entre as amigas, pergunta a elas, mas elas não sabem quem esse tal fulano.

Ela conta a história, elas riem, não entendem nada, acham que está inventando tudo, ela se irrita, as amigas dizem que não tem nenhum fulano na turma, que hoje é o último dia de aula.

Definitivamente louca. Definitivamente sozinha nesse mundinho.

Ela se lembra de tudo, mas não aconteceu. Como pôde? Nunca existiu palavra alguma? Nem mãos e nem um amor bruto... E a vida, lembra? Começa a voltar a si, é mesma de sempre, nada mudou.

Tem uma incômoda saudade, vai se lembrando de suas preocupações reais, com Deus, com o trabalho, com a desculpa que vai inventar amanhã... Que peninha.


De repente, pi-pi-pi-pi-pi, pi-pi-pi-pi-pi, acorda,

ufa! Foi um sonho, desliga o irritante despertador, abre o calendário do celular,

mas ainda é dia 19 de dezembro de novo.

Levanta-se, então, meio confusa, lava o rosto, liga a cafeteira e começa a refazer quem é.



Não se lembra do rosto que buscou, os fragmentos do sonho vão se dissipando, quanto mais busca mais se distancia e fica fria. Até sobrar na boca somente um gosto de sombra.

Segue o dia normalzinho até esquecer tudo. À noite entra na sala, tenta se lembrar do sonho para contar para as meninas e não consegue, deixa para lá...

Então, não existe, nada disso aconteceu; sua vida tem o mesmo agosto.

Volta para casa com vontade de dormir mais, de preferência sonhar.

Na manhã seguinte, desperta tranquila sem resquícios, agradece a Deus por tudo, mas-porém-todavia nenhum sonho estranho, nenhuma brutalidade, vai a vida indiferente dia após dia.

Mas seu corpo está inconformável, ao sair na rua, os olhos buscam o intangível.



Vivo mais um dia no esquecimento.



Então vem a noite, a infalível atmosfera dos amantes.



Entro na locadora. Lá você está, com esses olhos de comer destinos, conversando com o dono do lugar sobre qual filme que vai levar.

Seu corpo me reconhece, mas você, friorenta e inane, não acredita em magia, ainda.

Eu logo lhe reconheço,
já abençoado com o dom de capturar o inefável. E digo a mim mesmo, paciência, paciência:
melhor começar com uma provocação.



_ Lembro que o nosso primeiro encontro começou por acaso, em um lugar como esse.

_ Eu estava na locadora querendo muito ver aquele filme que de tão lindo fica deprimente assistir sozinha.

_ É, você estava falando isso pro dono da locadora.

_ Aí, você se meteu na conversa, como se fosse íntimo.

_ Ou predestinado

_ Predestinado a irritar. Por que você se infiltrou na minha vida?

_ Ah, porque prefiro filmes a dois aos filmes deprimentes.

_ ou porque você não resiste a donzelas indefesas.

_ ou porque converso com fadas, crio dragões e sei voar.

_ ou porque a vida é curta demais pra caber descrença.

_ ou porque eu me amo mais quando amo você.

_ ou porque você é carente e está sempre roubando ilusões.

_ ou porque as ilusões são meninas abandonadas nos becos escuros, cheia de medos bobos

_ que só precisam da sua mão, abraço e tudo bem.

_ ou porque preciso do seu tudo-bem, ventre e sorriso.

_ ou porque somos personagens desse filme a dois.

_ porque eu também sonhei com você.

3 comentários:

Pâmella Véras disse...

Me fez lembrar de um filme querido! Waking life! As descrições, as perdições, confusões..! E tive momentos de surpresas!! =)

Pâmella Véras disse...

Sonhei com esse pi pi pi pi pi do despertador, e olha que o meu faz diferente.. GR! Artazanou.

Thais Allana disse...

este está maior
mas ainda tem aquela essência