ano 1986, Parte XI

Varanda. Madrugada.
Eu dormi, esse é o som do carro dele, em alguns segundos vai parar aqui na porta. Ai, acho que acabou o descanso. Lá vou eu, de novo, abrir aquele sorriso convincente. Às vezes, na vida, a gente acha que está feliz. Mas não... Alguma coisa não... Não sei. A felicidade pode enganar. Essa vida feliz pode esconder... Argh! Será que são os meus hormônios? Não faço sentido.
O que eu posso ter contra essa felicidade? Sempre que repasso pelo check list, está tudo okay. Marido okay, sexo okay, bem, melhor que okay para 15 anos de casada, filhos são mais do que mereço, mais do que aguento. Aliás, meu amorzinho também, ele é melhor pai do que eu jamais poderia ser mãe. E olha que as mães já saem na vantagem. Eu acho que não estou fazendo nada da vida e ao mesmo tempo sinto que estou carregando um peso enorme. Estou tão cansada. Não quero pensar em como seria minha vida se não tivesse casado. Droga, dizer isso faz justamente o efeito contrário. Meu cérebro tem um sério defeito, ele costuma ignorar os não. Principalmente de frases importantes. Agora vou ficar nas reticências, não pensando em como seria minha vida se fosse solteira...

Eu não faço a mínima ideia de como... Eu não tenho coragem de falar com ele. Sequer saberia o que dizer, acabaria deixando ele confuso também. E hoje são as certezas dele que me dizem onde estou no mundo. Eu vou acabar a vida inteira aqui, estou uma bagunça. Eu sou um labirinto. E mãe de dois filhos, uns pestinhas que não me deixam em paz um segundo. Graças a Deus acabei desenvolvendo a habilidade de não acordá-los. Ou acordá-los calmamente. (Ainda não desenvolvi a capacidade de ignorá-los) Isso não é por ser boa mãe, é só pra manter a sanidade por mais uns minutinhos.

Acabei de colocar meu filho mais novo na cama, enquanto meu marido se instalava e guardava as malas no meu antigo quarto. Ficar nesse quarto me deu ainda mais o que pensar sobre como seria a vida se não tivesse casado tão jovem... Hajam reticências. Se ele fosse um homem ruim para mim, pelo menos eu teria um bom motivo. Realmente sou feliz no que depende dele, mas ser feliz não depende disso. Passo meus dias pensando nele e nos meus filhos, fazendo de tudo para ficar tudo perfeito e, de fato, não tenho do que reclamar. Acabo me sentindo culpada por me sentir insatisfeita com o que temos.
Voltei à varanda, onde ele me encontrou com olhar inquiridor. Eu não digo nada, acho que ele sabe. Entrou de volta para casa, com certeza ele vai ficar escrevendo naquele caderninho. Sabe quando preciso ficar sozinha alimentando meus dragões. Era tão bom quando ele chegava e tudo isso desaparecia. Eu me perdia no seu jeito apaixonado de ver o mundo, comigo no topo. Agora, estou tão acostumada ao topo que quero saltar. Tenho a vida que dessa varanda tantas vezes sonhamos em ter. Só não tenho os mesmos sentimentos.
Onde foi que me perdi?
Vou dormir, amanhã é um dia feliz, vai chegar minha amiga com a família. Vai ser muito legal todo mundo junto de novo. Tomara que nossos filhos herdem nossa amizade, sempre achei isso bonito, os pais serem amigos, os filhos serem amigos... É, vai ver eu tenho salvação.
Gostaria de me sentir perdidamente apaixonada de novo. Mas não por outro homem (nem mulher). Tive sorte. Casei cedo, mas antes namorei muito. É claro que homem e menino são coisas diferentes. Namorei muito menino, adolescentes, assim como eu. Mas dá pra saber que tipo de homem cada um seria, assim como o menino que me apaixonei acabou se tornando o homem que casei. Agora ele lida com todos os assuntos sérios e chatos da vida, mas tem o mesmo tom sonhador com tudo e foi por isso que acabei me traindo e casando.
Digo me traindo porque desde criancinha dizia que nunca iria me casar, teria uma profissão e viajaria o mundo. Traí tudo isso, fui vítima da mesmice da vida: engravidei e casei e fui feliz pra sempre. Uns anos depois tive esse menininho que em tudo me lembra o pai dele. Eu não poderia ser mais feliz com os filhos que tenho. Mas que me traí, me traí.
Não dizia que nunca me casaria por capricho infantil: meus pais eram péssimos, viviam brigando, gritando, se esbofeteando e chorando. Também viviam brigando, gritando, esbofeteando a mim e meus irmãos e nós acabávamos chorando escondidos pelos cantos. Eu não tinha 5 anos quando pensei que nunca iria me casar. Então, já mocinha namorava um, depois outro, mais um, mais outro e seguia assim, não me apegando, terminava por qualquer probleminha, nunca havia um namoro que sobrevivesse ao fim da paixão, ao primeiro sinal de defeito acabava tudo e mais um pobre coitado da fila acabava fazendo a besteira de se apaixonar por mim. Eu avisava antes como eu era por desencargo da consciência.
Eu demorei a entender isso. Não foi assim consciente, não lembro de como me explicava esse comportamento, somente ia fazendo. Só depois de casada é que compreendi isso. Acho que entendi quando ele disse durante a nossa primeira discussão que preferia me ver feliz a ter razão. Às vezes dá vontade de bater nele de tão certinho, o cara está sempre certo, que raiva! Não consigo brigar seriamente com ele, não que esteja tentando. Foi quando eu vi que não precisava ser daquele jeito de meus pais... Mas ainda há um dragão no labirinto.
Quando eu fui para o quarto ele estava dormindo com o caderno sobre o peito. Ele não me deixa ler o que escreve. Sei que no casamento temos que respeitar a individualidade, a privacidade e o espaço do outro. Mas que se dane, quem vai ser hipócrita por me condenar!? Eu tirei o caderninho do peito, com todo o cuidado, e li mesmo. E, naquela madrugada, ele - conseguiu de novo – fez tudo isso desaparecer.
Dormi com 18 anos de novo.
(continua...)

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