ano 1986, Parte XII

Acordei com 83. E ranzinza. Odeio ser acordada cedo. Minha mãe tem a incrível capacidade de acordar às 4h30 da manhã, todo santo dia. Às 6h30h já fez todo o serviço de casa. Pra quê essa pressa toda!? Bem, dessa vez foi para me acordar para a gente aproveitar o dia. Ora, eu gosto de aproveitar o dia... Dormindo! Mas não, ela quer que eu conheça as mudanças da cidade onde cresci. O mercado municipal restaurado, a estação restaurada, a igreja restaurada, o casarão restaurado... Isto é, tudo velho pintado.
Mas no fim das contas foi bom porque minha amiga chegou logo depois e eu teria que levantar de qualquer forma. Ela chegou com a filha, sem o marido, mau sinal. Eu já não a encontrava há muito tempo. Há... 10 anos? Gente, foi tudo isso mesmo? 10 anos!? É... Desde o nascimento da filha dela. Quer dizer, desde o batizado, eu fui madrinha! Devo ser uma péssima madrinha mesmo. Acho que minha mãe tem razão, eu deveria vir mais vezes.
Estava na cozinha preparando o café-da-manhã do espoletinha, quando minha mãe foi buscá-las na porta. Poucos segundos se passaram até que voltou com as duas pelas mãos.
_ Ooi! Linda! Que saudade de você!
_ Ahhh, meu amor! Que saudade!
E nos demos um daqueles abraços bem apertados, constrangedoramente longo pra quem está em volta, estranhamente íntimo pra que está envolto.
_ E aí? Como você está?
_ Estou com dois filhos, um deles endiabrado, o mais novo - Acho que fiz aquela cara de mãe em fim de festa infantil, ela riu em solidariedade. E você, amiga?
_ Eu estou com uma menina, mosca morta, e dois meninos. E – sussurrou pra mim – sem marido.
A menininha abaixou os olhos, a minha amiga claramente não tinha ideia dos traumas que ia causar naquela criança. E completou em alto e bom som:
_ Essa menina não faz nada, só fica parada no canto, olhando pras coisas, lendo... Nas festas não brinca normalmente com as outras crianças, no máximo organiza as brincadeiras, distribui os papéis entre cada criança, explica as regras e se aborrece quando uma não faz do jeito que ela quer. É uma mosca morta mesmo, não foi a mim que ela puxou.
_ Eu acho que é uma princesa. - Falei olhando para ela - Uma menininha linda e muito inteligente assim não é para ficar rolando no chão, talvez ela consiga ensinar modos ao meu filho, que parece um bichinho do mato, ou palhaço de circo, mas é muito inteligente e divertido também, e adora livros.
Aí minha mãe resolveu entrar na conversa.
_ O que esse menininho precisa é de umas boas palmadinhas para ficar sossegadinho. Daqui a pouco ele acorda, aí acabou a nossa paz. Ele é o príncipe mesmo, faz tudo que quer e me deixa louquinha louquinha. Ah seu eu pego ele, endireito num instantinho.
Aí a leonina tomou conta de mim:
_ Mãe! Se você encostar no meu filho, eu nunca mais piso aqui.
Fui tão grossa, desproporcionalmente estúpida, que minha amiga ficou constrangida e pediu licença para ir tomar banho, deixando a menina comigo e minha mãe, que fez cara de ofendida e saiu sem dizer nada. Probleminha dela.
Ela, a mosca morta, estava com os olhos baixos, como se tivesse encarando um vão sob seus pés. Tadinha - por um segundo achei que ela fosse enterrar a cara no chão. E segurei sua mão com carinho.
_ Sabe o quê que é? Não posso ver nenhuma menina ou menino tristes. Eu defendo as crianças com toda força, igual uma leoa quando vê seus filhotinhos ameaçados. Se você quiser posso te defender também, para ninguém te fazer mal ou machucar você. Eu não vou deixar ninguém incomodar uma princesinha como você...
Ela olhou para mim e sorriu, tão desamparada. Eu me vi naquela criança, essa é a verdade.
_ Seu filho realmente é um príncipe, faz tudo que quer?
_ Você já leu o Pequeno Príncipe?
_ Já li, era o livro que eu mais gostava.
_ Era? O que houve? Não gosta mais?
_ Gosto sim, muito. Mas estou lendo Peter Pan... Aí agora estou em dúvidas de qual é o meu predileto.
(Predileto? Uma criança de 10 anos que fala predileto. Ela é estranha mesmo.)
_ Ah, o Peter Pan... Escolha difícil mesmo. Eu tenho sorte porque tenho os dois.
_ Ninguém tem o Peter Pan, nem o Pequeno Príncipe...
_ Assim como ninguém tem uma princesinha, mas eu estou olhando para uma.
_ Eu não sou uma princesinha, sou uma mosca morta. Não sirvo pra nada.
_ Às vezes, quando a gente é uma menina, não sabemos tudo que somos. Muita coisa fica escondida, desde que éramos bebezinhos, depois conforme a gente vai crescendo essas coisas vão se revelando... Mas no fundo a gente sente alguma coisa dizendo que somos especiais, não é? - Seus olhinhos brilharam.
_ Hum... Igual à Cinderela? Ela era maltratada pelas irmãs, não sabia que seria uma rainha um dia...
_ Igualzinho. Às vezes, também, alguém olha pra gente e entende tudo que está acontecendo com a gente e vem ajudar, igual à fada madrinha. É porque as madrinhas sabem que a gente tem um coração muito bom.
_ Eu vejo que você tem um bom coração. - Ela falou isso com tanta pureza e esperança, que quase chorei num cantinho. E é minha madrinha.
_ Eu te olho e sei que você é muito especial, uma princesinha de verdade, que um dia vai achar seu castelo e seu príncipe encantado. - Enfim ela sorriu, igual criança.
_ Seu filho não é realmente um príncipe, é?
_ Ele é um príncipe extraordinário. Por dentro ele tem o coração do Pequeno Príncipe, mas ainda não sabe disso. É bagunceiro e agitado igual ao Peter Pan. Sabe por quê?
_ Por quê?! - Ela verdadeiramente queria saber.
_ Porque não tem nenhuma princesa para acompanhá-lo nas aventuras e ensiná-lo a se comportar como um príncipe de verdade. - Seu rosto afogueou, ficou da cor da pitanga. Abaixou a cabeça e começou a rir.
Eu ri também, mas mudei de assunto porque, só com a ideia, ela já estava envergonhada. Perguntei se estava com fome, ela consentiu com a cabeça. Comecei a preparar o café da manhã, enquanto perguntava sobre ela, botei o pão e o achocolatado na mesa. E me sentei.
_ É o café da manhã preferido dele.
Ela estava faminta, mas, muito educada, não havia pedido nada. Ela não queria mudar de assunto, queria saber mais e mais sobre ele. Só quando perguntou o nome dele que a ficha caiu e percebi que os nomes dos dois eram palíndromos.
_ Você sabe o que é um palíndromo?
_ É aquele bicho assim? - aí ela fez um gesto com os dedos tamborilando na mesa e se eminhocando toda...
_ Não, esse bicho aí é uma centopéia. Eu acho.
_ Ah, nesse caso nunca ouvi falar em palímodro.
_ Palíndromo.
_ Ai, o que é?
_ Seu nome é um.
_ Ahn?! - Fez uma cara muito ofendida, misturada com aquela de mosca morta. Se é que existe isso. Mas logo desfiz a ofensa.
_ O nome do meu príncipe também é. São nomes muito especiais, porque são palavras mágicas que podem ser lidas de trás pra frente que fica a mesma coisa. - Alcancei um papel e caneta no aparador da cozinha e escrevi o nome dela e o nome dele para ela ver. Escrevi também Acaiaca e “a sacada da casa”...
_ Nossa! Que legal.
_ É, só meninas, meninos e lugares muito especiais têm nomes assim.
Foi quando me virei e vi meu Peter Pan parado atrás de nós com a cara amarrotada, marcada e amarrada. Ele soltou um “Ô mãe!” inconfundível, com ciúmes do seu lugar, seu pão, seu achocolatado e, assim espero, de mim. Era a indignação em pessoinha.

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