ano 1986, Parte X

A sacada da casa. Aquele dia.

Eu acordei já à tarde, dormi a manhã toda, sequer almocei. Fiquei um pouco dolorido de tanto ficar na cama. Ainda meio sonolento me movi com a intenção de levantar, mas entonteci e desisti, então fiquei na cama mais um pouco. Estava no quarto do segundo andar, cujas janelas abrem-se para a varandinha do fim do corredor. Dali ouvi a voz do meu filho, conversando com alguém... Uma menina? Levantei, curioso, olhei pela janela e vi os dois, debruçados no parapeito, estavam olhando o morrote à frente, onde costumava passar o trem. O mesmo trem que eu olhava com minha linda da namoradeira e que tantas vezes levava as lentas tardes de domingo a este sonhado futuro.

Da janela mesmo eu perguntei _ Você é amigo dela?
Ela levou um susto, depois enrubesceu, tímida e saiu correndo.
Ele sorriu para mim, olhou para ela sumindo pelo corredor e disse
_ Ué [que significa que pergunta boba], sou ué [pergunta boba mesmo].
Aí eu vi que o caso era sério. Saí da janela e fui para a sacada, continuar essa conversa. Eu queria mesmo era provocá-lo um pouco mais, então insisti.
_ Mas vocês são amigos há muito tempo? Você nunca me apresentou a ela.
_ Ô pai, você roncou o dia todo, onde já se viu conhecer alguém dormindo?! – Dei o braço a torcer, dormi muito tempo mesmo.
Ele olhou muito sério para mim e resolveu contar.
_ Ela é minha melhor amiga. – Emendou o “amiga” com aquele sorriso feito dos olhos mais sapecas que já vi.
_ Nossa, então vocês devem se conhecer há muito tempo.
_ É, muito tempo mesmo, um dia inteirinho, ela chegou cedinho e com muita fome.
Fiquei pensando de onde ele tirou essa mania de falar diminutivos, deve ser a avó estragando meu filho.
É claro que toda criança quando faz um amigo novo, ganha um ar de paraíso, mas ele odiava conhecer meninas. “Elas são chatas, vivem se pintando, andam com boneca para cima e pra baixo, são cheias de segredinhos, elas não sabem lutar, não sabem jogar futebol, meninas são chatas.” Ele concluía.
Não posso dizer que discordo completamente, por isso achei muito estranho que ele estivesse com uma nova melhor amiga, uma menina! Tinha alguma coisa diferente nesse menino.
_ Desde quando um dia inteiro é muito tempo? Um dia não é nada – concluí.
_ Ué [mais uma vez ele ia falar uma coisa óbvia], ué, pai, eu posso comer o dia inteiro?
_ Não.
_ Por que?
_ Porque é muito.
_ Eu posso jogar Atari o dia inteiro?
_ Não.
_ Porque você diz que é muito tempo, né pai.
_ É. – Já tinha percebido que ele tinha uma ideia prontinha na cabeça.
_ Eu não posso ver tevê o dia inteiro, “porque é muito tempo” - Disse me imitando. Não posso brincar na rua o dia inteiro, “porque é muito tempo”. Ué, um dia inteiro é muito tempo pra tudo que eu gosto de fazer...
Não tinha jeito, era irremediável.
_ Eu estou brincando com ela desde manhãzinha...
Perdidamente irremediável.
_ A gente já se conhece o dia inteirinho, então agora ela é amiga. A minha melhor amiga.
(Tadinho)
_ Ela é sua amiga mesmo?
_ Ela que falou isso, foi ela que disse que ela é minha amiga. Ela é minha amiga há muito tempo, porque para tudo o que eu gosto, o dia inteiro já é muito tempo.
É uma pena que muito tempo fazendo o que a gente gosta passe tão rápido.

Foi aí que a mãe dela chegou, sorrindo com aquele ar de mãe que entende tudo e também com aquele olhar de menina, com a menina pela mão. E disse para ela:
_ Esse é o pai dele, fique aqui que eu vou conversar com ele lá embaixo.
_ Oi, muito prazer, eu sou a amiga do seu filho.
_ Que menina linda, vocês são amigos? Que bom...
A mãe dela foi me interrompendo:
_ Deixe eles dois, deixe que brinquem sozinhos. Vem conversar comigo. A sua linda foi fazer compras com sua sogra. Tenho que lhe contar uma coisa que aconteceu.
Eu estava obviamente atrapalhando alguma coisa, provavelmente um experimento científico, a julgar pelo cuidado com que ela me conduziu para fora da sacada da casa.
Mas eu queria fazer parte daquela alguma coisa que eu estava atrapalhando. Impossível, é inviável fazer parte de tudo que a gente ama, mas é possível ficar feliz com isso. E insistentemente tentar.
Aí ela me pegou pela mão e começou a me arrastar pelo corredor, escada abaixo, até a varanda da namoradeira. Resisti educadamente, tão educadamente que fui.
Começou a me contar tudo que perdi enquanto estava dormindo. Como pode caber tanta vida numa simples manhã?
(Ele já me explicou isso, ué. Eu sei, um dia é muito tempo.)
Ela me contou que a princípio ele não gostou da ideia de a única criança que tinha na casa, além dele, ser uma menina. Quer dizer, para ele: nin-guém [ela falou imitando a indignação dele]. Não tinha ninguém para ele brincar. Ele ficou revoltado, quis voltar pra casa, quis ir pra rua, ir pro colégio, ele queria ficar parado, queria pular na piscina, fazer cambalhotas... Ele não gostou mesmo daquilo e, ao mesmo tempo, estava completamente desconcertado, tímido, porque ela estava ali.
A menininha, pelo contrário, ficou empolgadíssima, e como ele não deu muita confiança, implicou com ele, muito. Se ele estivesse com os brinquedos, ela mexia nos brinquedos dele, se ele sujasse a roupa, ela falava da roupa dele, se ele falasse, ela imitava o jeito que ele falava, e se ele resolvesse ficar quieto, deitado no sofá, ela fingia que não estava vendo, sentava em cima dele e fazia cosquinhas até ele prometer que ia brincar com ela.
Ela era mais alta do que ele, porque era 3 anos mais velha. Se sentia uma mocinha, por ter dez anos, quer dizer, ela com dez anos, 10!, não era 9, um dígito só, mudou, era 10!, era quase uma fase completamente nova da vida, não era mais criança (como ele). Ela era praticamente uma pré-adolescente, Jesus!, quantas coisas a mãe encheu as ideias dessa menina? Ela ia mudar de turno na escola, não ia estudar mais com as crianças à tarde, agora ia de manhã para o colégio, com os alunos grandes. Até seus livros mudaram, ficaram com menos imagens e mais palavras, mas disso ela não gostou. Por que não manter as imagens e colocar mais páginas com as palavras? Ela perguntava a si mesma e à mãe, mas não aos outros, para não parecer boba. A mãe dela contava tudo isso com maior orgulho.
Aparentemente se desgostaram. Não. Melhor dizendo, aparentemente apenas da parte da implicância dela, já que ele desgostou sinceramente. Desgostou daquele sentimento assim como nosso organismo reage com anticorpos às coisas estranhas que querem invadir a gente e fazer bagunça.
Aonde ele ia, ela ia atrás, igual uma pulga, que foi o apelido que ele colocou nela, porque ela ia saltitando (pulgas saltam, né? Pelo menos ele disse que sim) e grudava nele.
É claro que por ela ser mais velha 3 anos, achava que ele era uma criança, aliás, ele era uma criança. Só que ela também.
Desde o primeiro encontro.
Ela entendeu naquele pequeno tempo em que se olharam pela primeira vez.
(Coisas que demorei a vida toda para ainda não entender nele...
Entendeu o quê? Ué, simplesmente entendeu.)
Ela já sabia ele de cor e salteado...
Eu já estava um pouco cansado de ouvir, mas sabe como é: mãe de pulga, pulgona é. E ela continuava a falar, detalhes e mais intermináveis detalhes disso, daquilo, daquilo outro. Até que eu reuni forças para pedir licença porque queria assistir ao programa de esportes na tevê.
_ Tudo bem – disse ela com um tom ofendido, mas educado e emendou: Depois eu lhe como foi o primeiro encontro deles, eu tinha acabado de tomar banho quando ele chegou na cozinha...
_ Okay, você venceu: batata-frita! Eu fico.
Ela sorriu vitoriosa e começou
_ O primeiro encontro foi mais ou menos assim
_ Olha!
Praticamente gritei interrompendo. E apontando. E levantando...
_ Minha linda está chegando. Pode deixar que ela vai me contar.
Ufa! Nesses momentos vale muito a pena ser casado. Quer dizer em outros também. Ah, eu não vou ficar me explicando aqui. Voltando ao assunto, foi mais ou menos assim que minha linda me contou depois.

Quando ele acordava ia direto para cozinha. Ele adora leite com chocolate e pão com manteiga, então quando acordava ia direto para cozinha, onde normalmente encontrava a mãe dele e tudo o que ele gosta, prontinho, posto na mesa para ele, com a cadeira dele ao lado da cadeira da mãe. Mas se a mãe não tivesse na cozinha, aí ele ia acordar a mãe, já um tanto indignado.
Imagine então que dessa vez, ao chegar à cozinha, estava sentada de costas pra ele ao lado da mãe dele uma menina! Elas não perceberam a presença dele ali, e riam e falavam sobre alguma coisa... Ah! sobre ele. Mas quando se aproximou para ouvir melhor, a mãe dele se virou e viu que ele estava ali, desamparado. A indignação em pessoinha.
A menina estava sentada no lugar dele, tomando o chocolate dele, comendo o pão dele e conversando com a mãe dele. É muito abuso!
_ Ô mãe! Agora o que eu vou comer!? E agora?! Vou ficar com fome?
Ela é tão boa mãe instintivamente, como eu jamais serei bom pai mesmo me esforçando muito. E com um simples “Ô mãe!” ela entendeu tudo! Assim, num click! E foi logo apresentando os dois, explicando a ele, essa aqui é fulana, filha da minha melhor amiga beltrana.
_ Ela chegou de viagem agora de manhã, estava morrendo de fome, a mãe dela foi tomar banho e eu fiquei aqui fazendo companhia a ela enquanto você não acordava.

A menina se virou... ela o desconcertou... se prendeu naquele olhar...
E é lindo e talvez um pouco triste, mas começaram a envelhecer naquele dia.

A menininha ferida por um sentimento novo pensou que ele também estivesse morrendo de fome e foi logo a oferecer seu pão, seu achocolatado, seu lugar, seu abraço, seu nome... Talvez em solidariedade, talvez obedecendo ao seu instinto maternal, talvez por educação, talvez não… Talvez por não suportar aquele olhar indefeso.

Um comentário:

Unknown disse...

Por aqui... acompanhando!!! ;**