ano 1986, Parte IX

Ele passou a viagem inteira contando os postes, os bois, as faixas da pista, os carros – organizados por cor, claro, tem mais carros brancos do que todos os outros, sabia? Contava também as rodas dos caminhões, os ônibus classificava pelas placas, ia lendo outdoors, placas com os nomes das cidades onde passávamos... Ele queria tudo. Por ele entrávamos em todas as cidades, parávamos em todos as lanchonetes da estrada, comprávamos todas as lembrancinhas. Ia tirando fotos de tudo, tudinho mesmo. Nunca vi alguém gostar tanto de viajar assim.
E mostrava seus brinquedos aos outros carros e brincava com o vento pela janela com a mão do lado de fora como se fosse um avião. Depois se jogava para o banco de trás, deitava com as pernas para cima. Dançava com os pés como se fossem dois brinquedos, ria de tudo, ria de si mesmo principalmente, ria de mim mesmo de preferência. Quando perguntei o que ele estava fazendo, ele respondeu, _ Dançando na Lua, ué! - como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
Tudo era feliz, contagiosamente feliz.
Eu não sei como consegui me aborrecer com ele, devo ser um péssimo pai.
Assim que entramos no carro perguntou se estava chegando. Depois de dez minutos, perguntou se eu estava gostando da viagem, e depois de cinco minutos perguntou se eu já estava com saudades de casa, e do que eu mais sentia falta, e se queria voltar, e se...
Ele já saiba a resposta de tudo, porque sempre viajávamos juntos. Ele aprendeu em algum lugar que se vai sentir tanta falta de alguém ou de alguma coisa é melhor levá-la junto de si sempre. Desde então diz que eu não posso viajar sozinho, para eu não sentir falta dele. Aí eu pergunto quem ele levaria numa viagem.
_ Ninguém, eu sou só uma criança ué.
Ué significa que pergunta boba essa.
Ele apontou para fora da estrada e perguntou _ O que é isso?
_ É um plantação de abóbora – respondi.
Imediatamente ele gritou espantado: _ Abóbora?!
Ele estava tão surpreso, como se eu tivesse falado plantação de bebês ou coisa pior.
_ Eu nunca mais vou comer abóbora, eca! [Fazendo cara de nojo] Abóbora fica no chão?
_ É ela cresce no chão.
_ O chão é sujo, não podemos comer nada do chão, vou contar para mamãe!
E depois disso, nunca mais comeu abóbora de novo, e antes adorava carne moída com abóbora. Desde então, prevendo que isso iria acontecer, tomei muito cuidado.
_ E isso é plantação de quê?
_ É plantação de chiclete ping-pong tuttifruit.
O predileto dele. Mas ele olhava com aquela cara de interrogação, quase medo, Acredito ou não acredito?, ele pensava. Aí eu sorria e ele sabia que era brincadeira, e sorria também aliviado, abóbora tudo bem, mas chiclete! Ah, não, chiclete não vem do chão, deve cair do céu.
Ahhhh, quantas saudades vou sentir dessa criança, ele vai crescer, vai usar seus pés apenas para pisar.
Suas perguntas não buscavam respostas que satisfizessem uma criança de sete anos, ele perguntava até me deixar com dúvida, aí eu me virava para Deus e perguntava também. E Deus, não tendo a quem perguntar, desconversava.
Aliás, Deus era o assunto predileto dele, era como um super herói que realmente existia, mas que não gostava de ser super herói e deixava as coisas ruins acontecerem, mas ajudava por baixo dos panos. Até porque, se nada de ruim acontecesse, como Ele seria herói? Ihhhhh, a explicação dele sobre Deus era muito estranha. Acho que não era bem assim, tenho que perguntar de novo para ele.
Queria tanto lembrar cada momento, meu filho mágico. É claro que eu sou um pai babão, acho tudo lindo. E cansativo. Até sinto inveja dessa felicidade. Mas não consigo deixar de pensar que ele seja mais do que simples cores pintadas por mim, ele vem com tudo novo, felicidades que eu não ensinei.
Talvez por isso eu tenha resolvido escrever sobre ele, para não me esquecer de ser feliz. Para lembrá-lo quando já for gente grande e já tiver esquecido para quê servem os pés.
Como eu vou ficar triste se um dia encontrá-lo comendo abóboras.
Vou ficar mais triste ainda se ele se esquecer como voar.

Agora a gente está chegando ao nosso tão perguntado destino, em Minas Gerais, a casa da minha sogra, para ele simplesmente vovó. A propósito para ele tudo é simplesmente.
É madrugada do dia 29 de dezembro, minha esposa e o nosso filho mais velho já estão em Minas há uma semana. Ela está de férias e eu, não. Por isso vieram antes para visitar os parentes e amigos de infância dela.
É uma pena que ele esteja dormindo, vai perder a chegada, ele adora quando estamos chegando a algum lugar, fica a observar onde veio parar. Mas se for acordado, fica com raiva e mal humorado . E não é uma raiva qualquer. É uma raiva e mau humor profundos, fica caladão, todo sério, nada de brincadeiras.
_ Isso é muito sério - ele diz pausada e exageradamente. Se me acordar de novo, eu morro.
Acho que puxou a veia dramática da minha sogra, que sempre faz o maior drama com tudo e vive dizendo que está morrendo. Há séculos ela diz que está morrendo disso, depois daquilo. Promessas vãs.
Chegamos ao sobrado da boa vista, sinto uma nostalgia muito grande nesse lugar. Foi aqui, no aniversário do irmão dela, meu melhor amigo, que a conheci e me apaixonei. Tantas noitinhas passamos nessa varanda, na namoradeira, conjeturando nosso futuro, caso ficássemos juntos. Queríamos ter filhos, claro, mas nunca poderíamos imaginar dois filhos assim. Testemunhar a vida das pessoas que amo é o meu maior prazer. Ainda mais essa vida tão novinha, onde cada novidade parece uma invenção, ou sorvete de chocolate, ou fazer um gol!
O sobrado está silencioso feito uma assombração. Ah, minha linda está na varanda, dormindo na namoradeira. Ela, melhor do que ninguém, sabe como acordá-lo sem que ele perceba que foi acordado. Ela acorda, tem o sono levinho, meu bem. Abre um sorriso que emurchece cem anos de saudades, acena, se espreguiça e desce as escadas correndo. Não sei de onde ela arranja fôlego para tantos beijos, definitivamente tenho que parar de fumar, como ela ainda pode me amar tanto? Eu devo ser a pessoa mais amada do mundo... Quer dizer depois de meus filhos... E sobretudo depois dela, é claro.
Lá vai ela com ele nos braços, poderia viver mil anos feliz só com a lembrança desse dia.
Agora vou dormir também.

Fim.


Ah, antes que eu me esqueça:
Antes de sair de casa, ele pegou seus itens de primeira necessidade, um cobertor de flanela, um travesseiro em forma de gato, um cachorro astronauta, que é o que ele vai ser quando crescer.
_ Mas você vai ficar latindo, meu filho?
_ Não, né, pai – respondia ele com toda paciência pedagógica. Para isso eu não preciso crescer ó, au au au!

Um comentário:

Ana Luiza disse...

lindo