Vagalume

Vaga  na rua  lume,
no meu peito breu seja raio,
mas não, inútil cambaio
em toda atmosfera cintila,
e nem a si mesmo ilumina.

Brinca de fadinha,
faúlha, não farol.
Para quê brilha fraca frente ao sol?

Faz de conta que é estrela
de guardar entre as mãos...
Porém
se não mostra a vereda,
para quem lampeja então?

Vaga  em mim  lume
anos-luz,
na escuridão, a noite seduz,

se é em vão,
no universo, todos são.

Rói minha solitude,

meu negrume
vaga  em sua  lume.

Lancinante

ria e chorava de quando em quando com o contorcer das lembranças e ia por aí caçando passados passando retorcida por dentro por avesso por aquilo que sobrou lancinante de mim

Acentuação Gráfica

assembleia, colmeia, Coreia, dispneico, estreia, ideia, europeia, plateia
alcaloide, apoio (verbo), asteroide, boia, heroico, jiboia, joia, paranoico


O errado agora é certo.
Estou me sentindo meio alcaloide
com a descoberta de que o calendário inca, o tsunami, a reforma ortográfica e minha vida tem alguma ligação,
sim.
Por que não?
Não estamos todos meio radioativos ultimamente?
(eu até vi a Globo dizer que as usinas do Brasil são mais avançadas do que as do Japão.)
Obama veio fazer marketing à nossa custa, quem diria,
pousar ao lado de "comunista" dá voto, quem diria de novo.
Que país é esse?
Dilma's adventures in Wonderland.





dor mente dormente

Agredida, humilhada e desconhecida, sensivelmente desconhecida, essa moça, mulher anônima, é chamada de minha, gostosa, puta.

Diz cenário.

.sucinto.
Acepções
:
conciso,
brisa,
curto,
compresso,
comprimido,
sintético,
espaço,
síntese,
rápido,
veloz,
susto,
queda,

a vida,                                                                          sabão),
(é bolinha de________
suspiro,
piscada,
parêntese,
econômico,
essencial,
limitado,
ira,
ágil,
asas,
amor,
chama,
lacônico,
memória,
resumido,
bilhete,
baixo,
nota,
fino,
frágil,
eco,
bola,
volátil,
efêmero,
brigadeiro,
vírgula,
vontade,
salto,
estar,
arrepio,
breve,
pulo,
paixão,
suicídio.
ponto,
um
conto.

Caminho

_ Então, você se perdeu de novo?
_ É, me perdi de novo.
_ É incrível, sempre se perde. Como você consegue se perder tão fácil?
_ Ora, é muito fácil, difícil é encontrar. Porque para acertar só tem um caminho, e para se perder tem todos os outros.

e disse Eu

Tudo Há de Ser Lindo

"And so it is"

...Repousa o cansaço, a solidão, a espera, o tédio, a saudade do tempo. Sozinho, evito os momentos em que posso me descobrir só. Não sei se a vida que criei para mim me satisfaz, ou melhor, nesses momentos descubro que não. Chega a consciência da mediocridade, da insignificante vida a que me apego... O que me salvaria?, uma poesia, um abrigo antiaério, um beijo..


(01/02/2006)

Deus aos sete


Meu pai me conta uma história fantástica.
E eu quase me lembro dela, de tantas vezes que ouvi. Foi em 1981. Meus pais tinham o hábito de passar o dia na Lagoa de Maricá. Deve fazer quase vinte anos que eu não vou lá, mas o vento, a grama e o infinito das águas rasas marcaram a minha memória. Naquele dia tudo estava igual a todos os outros dias, meu pai lia a bíblia, até que o tempo mudou bruscamente.

Minha mãe veio correndo, parecia que tinha visto um fantasma, ou que ela própria era um. Mal conseguia falar, meu pai a acalmou, e quando finalmente ela conseguiu falar, quem ficou nervoso foi ele.
_ Que isso, Pilar!?, eu tenho que tirar o corpo do homem da água?! De onde você tirou isso?! Nós não temos nada a ver com isso! Logo, eu?, que idéia!, arrastar o corpo de um homem que sequer conheço.
_ Mas, meu bem, a mulher dele está desesperada e ninguém ajuda.
_ Se ninguém ajuda, não deve ser à toa, devem estar esperando os bombeiros, é melhor deixar como está.
_ Ora, e se fosse você, e eu estivesse desesperada, você gostaria que não fizessem nada?
_ Em primeiro lugar, se fosse eu, nunca me afogaria num lugar onde a água não passa da cintura, isso está muito suspeito.
_ Ai, deixa de ser insensível, você sabe que não é o primeiro caso de afogamento aqui.
_ Amor, e por acaso nos outros casos eu fui buscar algum corpo na água?!
_ Poxa, as crianças estão desesperadas, ficam gritando pelo pai.

Foi nesse momento que ele ouviu uma voz: Vai na água.
_ Está bem, Pilar, eu vou. - Fechou a bíblia, andou até a pequena multidão e encontrou a mulher chorando, e disse
_ Se acalme, cuide dos seus filhos, eu vou buscar o corpo do seu marido.

Isso que dá ser casado e ter hábitos estranhos. Tem uma escritura em latim que diz “um abismo atrai o outro”, nessa história uma estranheza atrai outra.

Enquanto andava pela água, ele orava, perguntava a Deus,
_ Oque eu estou fazendo aqui, cruzes!? - Não era uma oração com sábias palavras, mas era extremamente humana. Às vezes, eu penso nesse mundo, e pergunto a mesma coisa: O que vim fazer aqui?

Enquanto não tinha a resposta continuava a andar, como quem um dia vai pisar na linha do horizonte, com paciência e determinação.
_ Ai, meu Deus, o Senhor tem muita certeza de que isso é uma boa idéia, né? - Olhou para trás e viu as pessoas pequeninas, na praia.
Já devia ter andado muito tempo, o sol estava forte de novo, e nenhum sinal do homem que resolveu morrer na hora mais imprópria. Isso era definitivamente a prova mais cabal de que no plano de Deus não estão todas as mortes. Que morte mais sem jeito.

Ouviu a voz: Olhe para sua direita. - Ele olhou, e viu, havia um corpo virado de cara para água,
_ E agora?
_ Leve até a mulher dele. Ô voz mandona.
Pegou-o pelo braço, e começou a arrastá-lo na água. Podia ver que ele estava muito inchado, já devia estar na água há algumas horas. O corpo morto na mão fez a viagem de volta ser mais longa ainda. Entre o nojo, ânsias de vômito e a perplexidade de ver um corpo em tão mal estado, meu pai tinha tempo de perguntar:
_ Por quê?!
Mas acho que Deus não tinha tempo entre uma coisa e outra para responder. Aliás, “por que?” deve ser que Deus mais odeia. Deve se vingar de nós estimulando as crianças na fase do porque.

Nada da praia chegar. Por uns minutos duvidou de que a praia realmente existisse. Sabia que as únicas coisas reais eram ele, o corpo e o senso de humor de Deus. Quando chegou mais perto da praia, um grupo de pessoas veio para dentro da água ajudar, quase sem forças a mulher viúva achava que corria. Ainda sem entender o propósito daquilo tudo, falou duas palavras para mulher, e passou pelo meio do povo, olhou as pessoas olhando o morto.

A barriga do homem morto parecia começar no pescoço, e nunca terminar. Definitivamente a morte havia encontrado a sua cara. O Ceifeiro Implacável parecia um Pastor de Ovelhas perto daquela imagem, que até hoje não sai da memória. Aquilo foi pura ânsia, um nó na boca do estômago, se ver sobre as águas, ver aquilo que um dia todos seremos: um corpo morto, sem propósito.

_ Volte lá!, disse a voz.
_ Como?! - Será que o despropósito não carrega também em si o seu fim?
_ É chegada a hora.
_ Hora de quê? Para aquele homem a hora já passou.
_ Mas para Mim a hora Me pertence.
_ Mas eu já fiz uma parte, não pode pedir a outro? Tudo eu, tudo eu. - Meu pai sentiu a espinha gelar, e por um segundo achou que sua espinha era do morto.
_ Está bem, se o Senhor diz.
Andou de volta, resignado, ficou frente àquilo que seria o seu fim, aliás o fim de todos nós. E disse, olhando para o morto:
_ E agora?

_ Toque na barriga dele.
_ Senhor!, Você está brincando, só pode.
_ Toque na barriga dele.
_ Eu vou fazer isso, só porque o Senhor é gente boa, e é quem É, e está mandando. Porque a última coisa que eu quero é tocar nesse homem morto de novo.
_ Toque, e verá quem tem lhe falado essas coisas.
_ Se é para isso, não carece, não! Eu nunca duvidei que fosse o Senhor, o tempo todinho a me falar para fazer essas coisas.
_ Toque!
Estendeu a sua mão, disse a viúva que se afastasse, e ao povo que a amparasse. Colocou a sua mão sobre a barriga do homem morto.

O homem começou a colocar para fora da boca, muita água, e tudo aquilo que havia comido, ninguém sabia que cabia tantas coisas assim em uma pessoa. A barriga estava quase normal, quando o homem começou a se mexer, e a tossir. Logo, as pessoas chegaram mais perto e ajudam o ressurreto a andar até a praia, onde seus filhos receberam o pai de volta.

O meu pai também voltou para mim. Voltou-se para minha mãe.
_ Vamos embora!
_ Por que?
_ Não me pergunte nada, vamos, fiz o que você me pediu, a família já tem o homem de volta, temos que sair daqui, antes que venham até nós.
Fomos. Fugimos como se tivéssemos matado alguém


Em casa, meu irmão ouviu a história com um misto de fascínio, fé e admiração.
Mal podia ser real a história, mas criança em tudo crê, principalmente no Pai e no pai falando do Pai. Dias depois meu irmão chegou em casa, ofegante, gritou:
_ Pai, pai, pai!!!
_ Que foi, meu filho?! - A criança então mostrou entre suas mãos havia um pássaro morto.
_ Aqui, pai, ressuscita ele.

Isso que dá, criança em tudo crê.
_ Que isso!? Ficou louco?! Como assim, ressuscitar? De onde você tirou essa idéia?
_ Ora, você contou que ressuscitou o homem morto, um passarinho deve ser mais fácil.
(Ai, meus Deus, isso aqui parece mais difícil, e agora?)
_ Meu filho, não fui eu quem fez o milagre, foi Deus.
_ Então, fala com Ele.
(Meu Deus, já não bastava o homem morto, agora vem essa criança com um bicho, quando isso vai parar? Dê um jeito.)
E meu irmão insistindo, :
_ Pai? Pai, cadê? Faz o negócio logo!

_ Christiano, me dê aqui a andorinha. Olha para ela, você acha que ela está sofrendo agora?
_ Não, claro, acho que não.
_ Pois bem, como ela morreu?
_ Eu não sei.
_ Você não sabe?
_ Não, ela deve ter levado uma pedrada.
_ Então, ela levou uma pedrada. Uma pedrada. Você quer que ela leve outra e sofra de novo?
_ Não.
_ Deixa-a descansar.
_ Então, não vamos pedir a Deus para ressuscitá-la.
_ Está bem, boa ideia, é melhor assim.


(04/09/03)
Lu Morena disse...

eu tenho anotado, solto em algum lugar do meu caderninho: O tempo não é sério.

Acho que

perdi a vergonha do fracasso

Amantes

tem gente que não gosta de um romance,
eu adoro!

Anormal

Não vale a pena ser normal.

Fudeu

não estranhe,
no amor golpe baixo é a regra.

Tente

Tentar entender as pessoas é engraçado.
Conseguir é triste.

Brilhante

_ você é brilhante como uma amante cheia de diamantes.
_ e você é brilhante como um diamante cheio de amantes.

Violenta

eu tenho uma alma violenta
que vive atacando pedras e cores
no telhado de Deus.

Fato

_ Eu sempre quis ter uma amiga assim, como você.
_ Como eu como? Assim esquisita? Ou absurda?
_ Imaginária.

Opinião:

Eu finjo que minha opinião tem importância.

...

e quero caminhar como um espírito livre,
e sofro com medo da eternidade,
mas um dia eu vou acordar e o mundo não estará lá.

ano 1986, Parte XII

Acordei com 83. E ranzinza. Odeio ser acordada cedo. Minha mãe tem a incrível capacidade de acordar às 4h30 da manhã, todo santo dia. Às 6h30h já fez todo o serviço de casa. Pra quê essa pressa toda!? Bem, dessa vez foi para me acordar para a gente aproveitar o dia. Ora, eu gosto de aproveitar o dia... Dormindo! Mas não, ela quer que eu conheça as mudanças da cidade onde cresci. O mercado municipal restaurado, a estação restaurada, a igreja restaurada, o casarão restaurado... Isto é, tudo velho pintado.
Mas no fim das contas foi bom porque minha amiga chegou logo depois e eu teria que levantar de qualquer forma. Ela chegou com a filha, sem o marido, mau sinal. Eu já não a encontrava há muito tempo. Há... 10 anos? Gente, foi tudo isso mesmo? 10 anos!? É... Desde o nascimento da filha dela. Quer dizer, desde o batizado, eu fui madrinha! Devo ser uma péssima madrinha mesmo. Acho que minha mãe tem razão, eu deveria vir mais vezes.
Estava na cozinha preparando o café-da-manhã do espoletinha, quando minha mãe foi buscá-las na porta. Poucos segundos se passaram até que voltou com as duas pelas mãos.
_ Ooi! Linda! Que saudade de você!
_ Ahhh, meu amor! Que saudade!
E nos demos um daqueles abraços bem apertados, constrangedoramente longo pra quem está em volta, estranhamente íntimo pra que está envolto.
_ E aí? Como você está?
_ Estou com dois filhos, um deles endiabrado, o mais novo - Acho que fiz aquela cara de mãe em fim de festa infantil, ela riu em solidariedade. E você, amiga?
_ Eu estou com uma menina, mosca morta, e dois meninos. E – sussurrou pra mim – sem marido.
A menininha abaixou os olhos, a minha amiga claramente não tinha ideia dos traumas que ia causar naquela criança. E completou em alto e bom som:
_ Essa menina não faz nada, só fica parada no canto, olhando pras coisas, lendo... Nas festas não brinca normalmente com as outras crianças, no máximo organiza as brincadeiras, distribui os papéis entre cada criança, explica as regras e se aborrece quando uma não faz do jeito que ela quer. É uma mosca morta mesmo, não foi a mim que ela puxou.
_ Eu acho que é uma princesa. - Falei olhando para ela - Uma menininha linda e muito inteligente assim não é para ficar rolando no chão, talvez ela consiga ensinar modos ao meu filho, que parece um bichinho do mato, ou palhaço de circo, mas é muito inteligente e divertido também, e adora livros.
Aí minha mãe resolveu entrar na conversa.
_ O que esse menininho precisa é de umas boas palmadinhas para ficar sossegadinho. Daqui a pouco ele acorda, aí acabou a nossa paz. Ele é o príncipe mesmo, faz tudo que quer e me deixa louquinha louquinha. Ah seu eu pego ele, endireito num instantinho.
Aí a leonina tomou conta de mim:
_ Mãe! Se você encostar no meu filho, eu nunca mais piso aqui.
Fui tão grossa, desproporcionalmente estúpida, que minha amiga ficou constrangida e pediu licença para ir tomar banho, deixando a menina comigo e minha mãe, que fez cara de ofendida e saiu sem dizer nada. Probleminha dela.
Ela, a mosca morta, estava com os olhos baixos, como se tivesse encarando um vão sob seus pés. Tadinha - por um segundo achei que ela fosse enterrar a cara no chão. E segurei sua mão com carinho.
_ Sabe o quê que é? Não posso ver nenhuma menina ou menino tristes. Eu defendo as crianças com toda força, igual uma leoa quando vê seus filhotinhos ameaçados. Se você quiser posso te defender também, para ninguém te fazer mal ou machucar você. Eu não vou deixar ninguém incomodar uma princesinha como você...
Ela olhou para mim e sorriu, tão desamparada. Eu me vi naquela criança, essa é a verdade.
_ Seu filho realmente é um príncipe, faz tudo que quer?
_ Você já leu o Pequeno Príncipe?
_ Já li, era o livro que eu mais gostava.
_ Era? O que houve? Não gosta mais?
_ Gosto sim, muito. Mas estou lendo Peter Pan... Aí agora estou em dúvidas de qual é o meu predileto.
(Predileto? Uma criança de 10 anos que fala predileto. Ela é estranha mesmo.)
_ Ah, o Peter Pan... Escolha difícil mesmo. Eu tenho sorte porque tenho os dois.
_ Ninguém tem o Peter Pan, nem o Pequeno Príncipe...
_ Assim como ninguém tem uma princesinha, mas eu estou olhando para uma.
_ Eu não sou uma princesinha, sou uma mosca morta. Não sirvo pra nada.
_ Às vezes, quando a gente é uma menina, não sabemos tudo que somos. Muita coisa fica escondida, desde que éramos bebezinhos, depois conforme a gente vai crescendo essas coisas vão se revelando... Mas no fundo a gente sente alguma coisa dizendo que somos especiais, não é? - Seus olhinhos brilharam.
_ Hum... Igual à Cinderela? Ela era maltratada pelas irmãs, não sabia que seria uma rainha um dia...
_ Igualzinho. Às vezes, também, alguém olha pra gente e entende tudo que está acontecendo com a gente e vem ajudar, igual à fada madrinha. É porque as madrinhas sabem que a gente tem um coração muito bom.
_ Eu vejo que você tem um bom coração. - Ela falou isso com tanta pureza e esperança, que quase chorei num cantinho. E é minha madrinha.
_ Eu te olho e sei que você é muito especial, uma princesinha de verdade, que um dia vai achar seu castelo e seu príncipe encantado. - Enfim ela sorriu, igual criança.
_ Seu filho não é realmente um príncipe, é?
_ Ele é um príncipe extraordinário. Por dentro ele tem o coração do Pequeno Príncipe, mas ainda não sabe disso. É bagunceiro e agitado igual ao Peter Pan. Sabe por quê?
_ Por quê?! - Ela verdadeiramente queria saber.
_ Porque não tem nenhuma princesa para acompanhá-lo nas aventuras e ensiná-lo a se comportar como um príncipe de verdade. - Seu rosto afogueou, ficou da cor da pitanga. Abaixou a cabeça e começou a rir.
Eu ri também, mas mudei de assunto porque, só com a ideia, ela já estava envergonhada. Perguntei se estava com fome, ela consentiu com a cabeça. Comecei a preparar o café da manhã, enquanto perguntava sobre ela, botei o pão e o achocolatado na mesa. E me sentei.
_ É o café da manhã preferido dele.
Ela estava faminta, mas, muito educada, não havia pedido nada. Ela não queria mudar de assunto, queria saber mais e mais sobre ele. Só quando perguntou o nome dele que a ficha caiu e percebi que os nomes dos dois eram palíndromos.
_ Você sabe o que é um palíndromo?
_ É aquele bicho assim? - aí ela fez um gesto com os dedos tamborilando na mesa e se eminhocando toda...
_ Não, esse bicho aí é uma centopéia. Eu acho.
_ Ah, nesse caso nunca ouvi falar em palímodro.
_ Palíndromo.
_ Ai, o que é?
_ Seu nome é um.
_ Ahn?! - Fez uma cara muito ofendida, misturada com aquela de mosca morta. Se é que existe isso. Mas logo desfiz a ofensa.
_ O nome do meu príncipe também é. São nomes muito especiais, porque são palavras mágicas que podem ser lidas de trás pra frente que fica a mesma coisa. - Alcancei um papel e caneta no aparador da cozinha e escrevi o nome dela e o nome dele para ela ver. Escrevi também Acaiaca e “a sacada da casa”...
_ Nossa! Que legal.
_ É, só meninas, meninos e lugares muito especiais têm nomes assim.
Foi quando me virei e vi meu Peter Pan parado atrás de nós com a cara amarrotada, marcada e amarrada. Ele soltou um “Ô mãe!” inconfundível, com ciúmes do seu lugar, seu pão, seu achocolatado e, assim espero, de mim. Era a indignação em pessoinha.

ano 1986, Parte XI

Varanda. Madrugada.
Eu dormi, esse é o som do carro dele, em alguns segundos vai parar aqui na porta. Ai, acho que acabou o descanso. Lá vou eu, de novo, abrir aquele sorriso convincente. Às vezes, na vida, a gente acha que está feliz. Mas não... Alguma coisa não... Não sei. A felicidade pode enganar. Essa vida feliz pode esconder... Argh! Será que são os meus hormônios? Não faço sentido.
O que eu posso ter contra essa felicidade? Sempre que repasso pelo check list, está tudo okay. Marido okay, sexo okay, bem, melhor que okay para 15 anos de casada, filhos são mais do que mereço, mais do que aguento. Aliás, meu amorzinho também, ele é melhor pai do que eu jamais poderia ser mãe. E olha que as mães já saem na vantagem. Eu acho que não estou fazendo nada da vida e ao mesmo tempo sinto que estou carregando um peso enorme. Estou tão cansada. Não quero pensar em como seria minha vida se não tivesse casado. Droga, dizer isso faz justamente o efeito contrário. Meu cérebro tem um sério defeito, ele costuma ignorar os não. Principalmente de frases importantes. Agora vou ficar nas reticências, não pensando em como seria minha vida se fosse solteira...

Eu não faço a mínima ideia de como... Eu não tenho coragem de falar com ele. Sequer saberia o que dizer, acabaria deixando ele confuso também. E hoje são as certezas dele que me dizem onde estou no mundo. Eu vou acabar a vida inteira aqui, estou uma bagunça. Eu sou um labirinto. E mãe de dois filhos, uns pestinhas que não me deixam em paz um segundo. Graças a Deus acabei desenvolvendo a habilidade de não acordá-los. Ou acordá-los calmamente. (Ainda não desenvolvi a capacidade de ignorá-los) Isso não é por ser boa mãe, é só pra manter a sanidade por mais uns minutinhos.

Acabei de colocar meu filho mais novo na cama, enquanto meu marido se instalava e guardava as malas no meu antigo quarto. Ficar nesse quarto me deu ainda mais o que pensar sobre como seria a vida se não tivesse casado tão jovem... Hajam reticências. Se ele fosse um homem ruim para mim, pelo menos eu teria um bom motivo. Realmente sou feliz no que depende dele, mas ser feliz não depende disso. Passo meus dias pensando nele e nos meus filhos, fazendo de tudo para ficar tudo perfeito e, de fato, não tenho do que reclamar. Acabo me sentindo culpada por me sentir insatisfeita com o que temos.
Voltei à varanda, onde ele me encontrou com olhar inquiridor. Eu não digo nada, acho que ele sabe. Entrou de volta para casa, com certeza ele vai ficar escrevendo naquele caderninho. Sabe quando preciso ficar sozinha alimentando meus dragões. Era tão bom quando ele chegava e tudo isso desaparecia. Eu me perdia no seu jeito apaixonado de ver o mundo, comigo no topo. Agora, estou tão acostumada ao topo que quero saltar. Tenho a vida que dessa varanda tantas vezes sonhamos em ter. Só não tenho os mesmos sentimentos.
Onde foi que me perdi?
Vou dormir, amanhã é um dia feliz, vai chegar minha amiga com a família. Vai ser muito legal todo mundo junto de novo. Tomara que nossos filhos herdem nossa amizade, sempre achei isso bonito, os pais serem amigos, os filhos serem amigos... É, vai ver eu tenho salvação.
Gostaria de me sentir perdidamente apaixonada de novo. Mas não por outro homem (nem mulher). Tive sorte. Casei cedo, mas antes namorei muito. É claro que homem e menino são coisas diferentes. Namorei muito menino, adolescentes, assim como eu. Mas dá pra saber que tipo de homem cada um seria, assim como o menino que me apaixonei acabou se tornando o homem que casei. Agora ele lida com todos os assuntos sérios e chatos da vida, mas tem o mesmo tom sonhador com tudo e foi por isso que acabei me traindo e casando.
Digo me traindo porque desde criancinha dizia que nunca iria me casar, teria uma profissão e viajaria o mundo. Traí tudo isso, fui vítima da mesmice da vida: engravidei e casei e fui feliz pra sempre. Uns anos depois tive esse menininho que em tudo me lembra o pai dele. Eu não poderia ser mais feliz com os filhos que tenho. Mas que me traí, me traí.
Não dizia que nunca me casaria por capricho infantil: meus pais eram péssimos, viviam brigando, gritando, se esbofeteando e chorando. Também viviam brigando, gritando, esbofeteando a mim e meus irmãos e nós acabávamos chorando escondidos pelos cantos. Eu não tinha 5 anos quando pensei que nunca iria me casar. Então, já mocinha namorava um, depois outro, mais um, mais outro e seguia assim, não me apegando, terminava por qualquer probleminha, nunca havia um namoro que sobrevivesse ao fim da paixão, ao primeiro sinal de defeito acabava tudo e mais um pobre coitado da fila acabava fazendo a besteira de se apaixonar por mim. Eu avisava antes como eu era por desencargo da consciência.
Eu demorei a entender isso. Não foi assim consciente, não lembro de como me explicava esse comportamento, somente ia fazendo. Só depois de casada é que compreendi isso. Acho que entendi quando ele disse durante a nossa primeira discussão que preferia me ver feliz a ter razão. Às vezes dá vontade de bater nele de tão certinho, o cara está sempre certo, que raiva! Não consigo brigar seriamente com ele, não que esteja tentando. Foi quando eu vi que não precisava ser daquele jeito de meus pais... Mas ainda há um dragão no labirinto.
Quando eu fui para o quarto ele estava dormindo com o caderno sobre o peito. Ele não me deixa ler o que escreve. Sei que no casamento temos que respeitar a individualidade, a privacidade e o espaço do outro. Mas que se dane, quem vai ser hipócrita por me condenar!? Eu tirei o caderninho do peito, com todo o cuidado, e li mesmo. E, naquela madrugada, ele - conseguiu de novo – fez tudo isso desaparecer.
Dormi com 18 anos de novo.
(continua...)